"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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23 de set. de 2008

UM FIM DE SEMANA EM FIERBINTI


Fierbinti fica a pouco mais de 35 quilometros a nordeste de Bucareste e, ao mesmo tempo, parece estar em outro planeta. Nesta simpatica vila, nosso amigo Fernando erigiu uma simpatica casa de campo, rustica, charmosa e acolhedora. Do andar de cima, onde me instalei, uma gigantesca janela da vista para o Lago Dridu, que tem 12 quilometros de extensao Na parede da escada que da acesso para o andar superior, fotos de antepassados do Fernando e da Elena. Brinquei com ele, dizendo que, como naqueles desenhos animados, elas dao a impressao de que vao mexer os olhos, nos seguindo! Brrr... Coisas da Romenia!

Por vizinhos, temos a simpatica dona Sandina e sua igualmente simpatica gansa de estimacao, a Bujorel! Fomos visita-los no domingo pela manha, e ela estava com a familia colocando uma imensa carroca carregada de uvas para moer e, apos isso, colocar num tonel para fabricacao de vinho. Enquanto Fernando e Elena conversavam animadamente com ela (com a Sandina, nao com a gansa...), dois parentes dela me explicavam o processo de fermentacao da uva. Fiquei estupefato quando percebi que o romeno falado pelos camponeses me soa muito mais claro do que o falado em Bucareste.

Quando ja anoitecia, estavamos a mesa degustando um delicioso feijao (!) feito a maneira romena pela Elena quando tocou o telefone. Ao cabo de alguns instantes, Fernando voltou dizendo: "O Conselheiro Jorge para voce, no telefone". Atendi. O conselheiro me contava sobre uma amiga, professora de ballet no Teatro Nacional da Romenia, que vive sozinha numa casa no centro de Bucareste e que dispunha de um quarto para alugar. O melhor de tudo? Fala frances fluentemente. Nesse momento, visualizamos a possibilidade de me instalar na casa dela, para nao haver a necessidade do deslocamento diario de Fierbinti a Bucareste, conservando nao obstante a possibilidade de ir vez por outra para o vilarejo na casa do Fernando para estudar no piano dele, mais a vontade, e la ficar por uns dias.
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Segunda-feira, 9 da manha. Ja na entrada de Bucareste, um transito digno de Sao Paulo retardava a nossa chegada. Eu, incrivelmente tenso por conta de saber o resultado do exame de admissao, que havia sido na sexta-feira, sentia passar milhares de coisa pela cabeca.
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Perto do meio-dia, cheguei na universidade e encontrei imediatamente o professor Dimulescu, chefe do departamento de piano, pessoa muito prestativa que me havia recebido para o exame e que me havia explicado o funcionamento do mestrado. Quando perguntei sobre o resultado do exame, com o sorriso que habitualmente ele me dispensava disse, em bom frances: "Voce esta admitido. O exame foi apenas para sabermos seu nivel de piano. Desejo grande sorte a voce".
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Nao senti a euforia esperada, mas um alivio sem precedentes. Fui a secretaria onde as sempre gentis e risonhas secretarias, Mariana, Liliana e Georgiana se ocuparam de me ditar as requisicoes que eu deveria fazer (em romeno!) solicitando matricula nas disciplinas de Musica de Camara, Acompanhamento e Piano. Aguardo, por fim, o comeco das aulas, em 1 de Outubro.
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De tarde, cheguei a casa da professora Adina. Surpreendeu-me com sua comunicabilidade e gentileza. Mostrou-me meu quarto e as demais instalacoes. Nao podia ser melhor. Aqui estou muito bem alojado e posso acessar a internet. Estou proximo da universidade e do centro (e do Fernando, havendo emergencia...)

Apenas a noite, ja deitado e tentando ler uma biografia da genial pianista Clara Haskil (em romeno), subitamente me dei conta do fato de ser um mestrando agora, e de como as coisas tem maravilhosamente acontecido...
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Assim vou me despedindo de mais uma pagina dessa rapsodia, direto aqui da Romenia, terra onde nao existem cobradores de onibus, onde as ciganas se vestem com rara beleza, onde as portas abrem sempre pro lado de fora e, nao menos importante, onde os pimentoes sao redondos e as cebolas sao compridas!


por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 23/09/2008

20 de set. de 2008

CU UN LITRU DE VIN NU SE MOARE DE SETE...


...foi a frase que mais repeti desde que pisei em solo romeno, e todos se impressionam com as semelhancas de nossa lingua. Ontem, sentados no terraco do hostel, apos um jantar indiano, estavamos um australiano, um ingles, uma romena, um holandes, um frances e eu, servindo de representante da lingua de Camoes e de Guimaraes Rosa, e nesse momento com um livro de poesia do Drummond nas maos. A lingua exerceu um fascinio muito grande nos presentes e a mim mais ainda a fluencia na leitura e no entendimento mostrados pela nossa amiga romena.

O tempo comecou a esfriar aqui e ja comecamos a temer pelo inverno. Por outro lado, os parques de Bucareste estao ganhando cores especiais.

Ontem ainda, conheci pessoalmente o compositor Sorin Lerescu, um dos grandes incentivadores da minha vinda a Romenia. Acredito ter poucas vezes na vida cruzado com alguem de tamanha amabilidade e cortesia. Convidou-me a frequentar sua classe de composicao, como maneira de me aperfeicoar nesse braco da musica que, como todos sabem, ate o momento encarei com um certo temor e receio.
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Amanha deixo o hostel e me instalo em Fierbintii. Deixo o transito caotico do centro de Bucareste por algo mais bucolico.
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Estou descobrindo maravilhosas variacoes da culinaria local, e constatei que e perfeitamente possivel, segundo os dizeres do Fernando, sobreviver a pao e queijo se necessario. Sao maravilhosas as versoes desses dois alimentos. Entre os queijos sao particularmente deliciosos o cascaval e o feta, uma especie de queijo branco com um gosto bem acentuado.
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Hoje, pela hora do almoco, logo apos o exame na universidade, fui a um restaurante num subsolo bastante modico e apreciado por estudantes e acho que, pela primeira vez, pude enfrentar um dialogo sem dar na vista (ou na voz) ser estrangeiro.
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Sao essas as novidades para o momento! Aguardem as fotos, em breve!

La revedere!

por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 19/09/2008

15 de set. de 2008

BUCARESTE, UNIVERSO PARALELO (parte 2)



Depois de quatro dias nesta incrivel cidade, as coisas, que ja nao eram dificeis, ficam divertidas. Inclusive quando se trata de arriscar falar romeno o tempo inteiro, inclusive na superlotada estacao de metro da Piata Romana, e enfrentar um metro pra la de turbulento.
* * *
Mais a vontade para sair, nao preciso mais ficar colado no mapa. As ruas principais ja se desenharam na minha mente e consigo passear com mais seguranca. Fui a Libraria Noi, e la descobri tres coisas: 1) a melhor, mais fascinante e completa livraria da Romenia nao tem um mapa sequer de Bucareste!!! 2) a palavra mais bela da lingua romena (entre as que conhecia ate agora): "belestriza", que significa "literatura". 3) um dicionario portugues-romeno, que eu nao acreditava existir!
* * *
Na universidade, fui muito bem recebido pela assistente de assuntos internacionais, que deu conta de toda minha documentacao, facilitou-me a vida no tangente ao pagamento das taxas (poderei faze-lo em mais suaves prestacoes!) e, de quebra, providenciou para que eu pudesse usar uma sala com piano por dois dias antes do exame, que sera na sexta-feira.

Fui a Embaixada do Brasil, e descobri, maravilhado e aliviado, que nosso pais e o mesmo em qualquer lugar: pessoas alegres, bem dispostas e comunicativas. Tive o privilegio de almocar com o nosso embaixador, que e uma pessoa de rara cultura, sensibilidade e diplomacia, e me fez sentir mais seguro e confiante. La pelo meio da tarde, chegou finalmente meu querido Fernando Klabin, com quem passei agradabilissimas horas ate o fim do dia, num papo divertidissimo e, e claro, na Ultima Flor do Lacio, nossa lingua portuguesa. Na embaixada ainda conheci o nosso adido cultural, Jorge de Sa, fantastica figura, a esposa do Fernando, Elena, uma romena que fala portugues perfeitamente e faz uma tortinha romena chamada placint, alem do Ion, romeno naturalizado brasileiro, que e o outro motorista da casa.

Ontem ainda pude, a conselho da Andreea, que e a pessoa que toca esse hostel, almocar num pitoresco e deslumbrante lugar, que existe desde 1879: o restaurante Caru Cu Bere. La provei dois dos mais tradicionais pratos romenos em sua versao vegetariana: a ciorba (sopa) e a mamaliguta (uma polenta com queijo e ovo). Deliciosos!!!!

Satisfeito e feliz da vida, vou encerrando essa segunda parte, hoje sem gatos no colo mas com uma chuva tremenda la fora!

La revedere!

por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 15/09/2008

12 de set. de 2008

BUCARESTE, UNIVERSO PARALELO



Foi como acordar de um sonho e se descobrir dentro de outro... A realidade da qual saimos muitas vezes e a mesma na qual entramos.
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Depois de mais de um dia chacoalhando em avioes, passando por interrogatorios nas alfandegas, ja estava bastante cansado e um pouco fora da realidade, quando a voz do comandante substituiu a musica e eu olhei para fora. Antes de conseguir soletrar "B-U-C-A-R-E-S-T-E", a cidade emergiu da massa de nuvens. Reconheci o aeroporto no instante do pouso e, confesso, esse foi realmente o primeiro momento em que me dei conta de onde estava e de que de fato la estava.
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O policial da imigracao lancou um olhar intrigado sobre meu passaporte, como quem diz "Nao e possivel" e, atonito, pousou energicamente o carimbo sobre meu visto. Retirei minha bagagem na esteira e, quando abriu-se a porta do desembarque, com um grande alivio vi a plaquinha com meu nome nas maos de um sorridente brasileiro. Garibaldi, cearense e extremamente bem-humorado, motorista do embaixador, foi incumbido de me conduzir nas primeiras horas. Levou-me a um cafe no centro, onde pude trocar meus euros por lei.
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O mais estranho em Bucareste e a incrivel semelhanca com qualquer cidade brasileira de grande porte. A cidade ela mesma e o povo. Em geral, aqui predios historicos coexistem com outros erigidos durante o regime comunista. Muitos deles sao imensos e escuros por dentro, os publicos especialmente, embora o cinza domine a paisagem. Casas de cambio a cada 10 passos, pessoas normalmente educadas e um transito digno de Sao Paulo. Estaciona-se de qualquer jeito, inclusive sobre as calcadas. Em compensacao, os motoristas param nas faixas para que pedestres atravessem mesmo em grandes avenidas, os bulevardul. Aqui, carros novissimos e de ponta circulam conjuntamente com os horriveis dacia, carros tenebrosos muito parecidos com os Lada, e que rem etem ao tempo do comunismo. Trens eletricos e pre-historicos circulam no meio da rua.

Apos me instalar no simpatico Butterfly Villa Hostel (tem varios gatos passeando pelo predio e enchendo os espacos de miados. Nesse exato momento, tem 3 dormindo no meu colo...) e tomar meu primeiro banho bucarestino, sai pelas ruas. Muitas bandeiras, da Romenia e da Uniao Europeia, sempre justapostas na entrada dos grandes predios.
Fui a um simpatico cafe/livraria, tomei um suco de laranja (que, aqui alias, e sempre feito com grapefruit. Portanto, vermelho!), arrisquei algumas palavras em romeno na rua e sempre fui respondido com sorrisos reconfortantes. Fui a um supermercado e observei coisas interessantes: optei por um sanduiche vegetariano e fui surpreendido por um queijo branco ("branza"), muito parecido com o nosso Minas Frescal, porem um dos mais deliciosos que ja provei. Experimentei uma cerveja romena, de excelente padrao e que me custou 1,89 lei, ou seja, algo em torno de R$ 0,90, um pouco maior do que a nossa latinha.
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Bananas? Sim, encontrei por aqui. Custam 4,70 lei. Cada!!!!
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Feijao, pra alegria geral da nacao, segundo o Garibaldi, tambem tem, e e possivel comer todo dia. (suspiros de alivio!!!!)
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A maior dificuldade foi comprar um cartao telefonico. A vendedora, no quiosque, com o maior jeito de professora primaria, quando compreendeu o que eu queria, estendeu-me o cartao e uma nota de 10 lei e disse com um sorriso enigmatico "cartela telephonica. Romtelecom". Hoje, no segundo dia, arrisquei: "O cartela telephonica internationala, va rog!", e fui mais rapidamente respondido.
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Liguei para Alexandra, que me atendeu com uma voz de grata surpresa quando eu disse "Raul Passos, from Brazil". Jantamos hoje, numa animada conversa de afinidades e afastamentos entre a cultura romena e a brasileira.
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Os ciganos nao sao tantos como fazemos supor no Brasil. Eles estao na verdade bem misturados na populacao e entre os poucos que identifiquei como tal, estao as vendedoras de flores.
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Hoje pela manha, tomei cafe com um casal de simpaticas polonesas (!), bastante divertidas e interessadas sobre o Brasil. Dei a elas de presente 25 centavos de real, e elas me deram em troca 50 centavos de Zloti. Creio que sai ganhando no cambio...
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Passeando pela Bulevardul Nicolae Titulescu, de sacola de mercado em punho e mochila, mastigando um generoso sanduiche, finalmente tive a sensacao de estar em casa, no meio dessa nova paisagem.

Estes foram resumidamente meus dois primeiros dias. Saibam que estou bem e espero que todos no Brasil tambem estejam!
La revedere!
por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 13/09/2008