"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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1 de jun. de 2010

A FORMA POÉTICA E A POESIA DA FORMA


            Entre os muitos paralelos que se podem traçar entre a música e a literatura, talvez o mais instigante não seja aquele que se limita a analisar as justaposições artísticas e seus encontros ao longo da história, mas sim como os seus valores se interpenetram e como as duas esferas se amalgamam numa correspondência autêntica. Em se tratando de duas linguagens, uma verbal e a outra não, mas que no entanto se vale de um complexo sistema de signos e de uma gramática sui generis, há determinados aspectos que identificam uma similitude nas duas práticas.
São elementos comuns às duas linguagens: a repetição de signos, o eco, a polifonia (em suas mais diversas concepções), a textura, a métrica, a agógica e a prosódia, e suas características moldam-se sensivelmente ao transitar da linguagem verbal à musical e vice-versa. Fala-se igualmente em musicalidade da língua, melodia subliminar no texto na mesma medida em que vemos o material poético enriquecer quando associado aos recursos musicais e ornado pelas idiossincrasias instrumentais e mesmo quando substituído pela música absoluta.
            A poesia se edifica sobremaneira sobre a sonoridade da língua em que é escrita e a música não têm fugido à regra, notadamente na produção contemporânea, onde a sempiterna sede e curiosidade dos compositores por novos sons e timbres, aliada ao avanço dos recursos técnicos dos instrumentos têm-nos guiado a um universo paralelo de possibilidades sonoras e de surpresas estéticas.
            Além dos valores de natureza puramente sonora, há ainda o da forma, e mesmo nisso são grandes as semelhanças. O recurso da forma é uma espécie de arquitetura que confere uma unidade orgânica e mesmo uma beleza plástica tanto ao edifício sonoro como às estruturas da poesia. Nesse sentido, é interessante recordar que alguns compositores têm recorrido ao recurso de empregar formas pictóricas e desenhos na grafia das partituras, transferindo a apreciação musical para outros domínios sensoriais. Esse valor tem se mostrado particularmente eficaz também enquanto aliado na valorização do elemento puramente sonoro.
            Em música, historicamente temos nos valido de formas célebres nos moldes das quais vieram à gênese a maior parte das obras-primas que conhecemos. Se pensarmos em forma-sonata, rondó, suíte, etc., sabemos que se tratam de expressões idiomáticas características da linguagem musical e que favorecem a expressão e o discurso do texto sonoro. Em outras palavras, dizemos que essas formas têm valores intrínsecos que constituem verdadeiras fórmulas de valorização do roteiro musical. Chegamos mesmo a identificar um efetivo fluxo narrativo notadamente na música programática. Essas formas não constituem um pacote fechado de possibilidades. Muitos compositores têm proposto novas formas que descortinam sempre um novo horizonte de modelos operacionais e que acabam por organizar o material sonoro sob a égide outros princípios hierárquicos (ou não) e igualmente instigantes em seus propósitos, na maioria das vezes.
Analogamente, na poesia correlacionamos essas fórmulas com o soneto, com as estruturas compostas por rima, por métrica silábica e com uma diversa infinidade de possibilidades estruturais que complementam o conteúdo literário e o valor próprio da sonoridade da língua. A esse respeito, lembramos o que acontece na tradução da poesia: sempre é possível transferir um significado lingüístico de uma língua para outra e, com habilidade e talento, recriar jogos de palavras e mesmo ambientar rimas. No entanto, a beleza própria da língua original permanecerá perdida, ou melhor, se converterá em outro tipo de beleza.
Em se tratando de correspondência de elementos, é provável que a música esteja, sim, mais próxima da literatura que de qualquer outra arte. É inequívoco o fascínio que a poesia exerceu nos grandes espíritos criadores e o quanto eles se apoiaram na magia dos versos para erguer seus monumentos musicais. Ela continuará, a despeito do avanço tecnológico sobre o criar musical, a servir não apenas de apoio filosófico mas como um espelho territorial criativo da grande linguagem universal.

por RAUL PASSOS, 23/05/2010