"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

raulpassos.maestro@gmail.com

26 de out. de 2010

Les Soirs Illuminés par l'Ardeur du Charbon (Claude Debussy) - PRIMEIRA AUDIÇÃO NO BRAIL

Nesta quarta-feira, 27 de Outubro, terá lugar, às 18h45, no Museu Paranaense, centro de Curitiba, mais um recital didático dentro do programa "Música nos Museus", iniciativa da Secretaria de Cultura do estado do Paraná.

O recital, oferecido pela mezzo-soprano inglesa Penelope White e pelo pianista catarinense Raul Passos trará ao público canções de câmara da obra dos compositores franceses Claude Debussy, Erik Satie e Francis Poulenc.

Além das composições vocais, Raul Passos interpretará dois prelúdios de Claude Debussy e ainda uma peça para piano recentemente descoberta, do mesmo compositor, e até o momento inédita no Brasil: Les Soirs Illuminés par l'Ardeur du Charbon.

O recital terá entrada gratuita e duração de 50 minutos.

4 de out. de 2010

CLAUDE DEBUSSY e ERIK SATIE: Compositores Rosacruzes

 
     Num tempo em que muito se tem falado sobre os vínculos entre música e esoterismo e sobre a ligação entre renomados compositores e fraternidades iniciáticas, percebemos quantas vezes os embasamentos históricos são duvidosos e muitas vezes repousam sobre meras especulações. Todavia, sabe-se efetivamente do engajamento de ilustres nomes da música com a Maçonaria. Este é o caso de Mozart (que escreveu inúmeras peças ou dedicadas à ritualística dos maçons ou com temática maçônica), Beethoven, Rossini, Liszt, Puccini, Sibelius (que, a exemplo de Mozart, escreveu música de inspiração maçônica), Piazzolla e Gershwin (esses dois últimos iniciados em lojas de Nova Iorque, na primeira metade do século XX). Perguntamo-nos então em que ponto o pensamento e o misticismo rosacruzes influenciaram igualmente as personalidades que edificaram a história da nossa música.

     Muito se sabe sobre o vínculo esotérico de Francis Bacon, Comenius, Paracelso, Nicholas Flamel, Benjamin Franklin, Jacob Boehme e Thomas Jefferson, por exemplo, para ficarmos mormente no campo gravitacional de filósofos e estadistas. Por outro lado, vemos pouquíssimas linhas dedicadas a ilustres músicos rosacruzes e, menos ainda, sobre as páginas artísticas por eles produzidas à luz da inspiração mística. Por certo, os dois principais nomes ligados ao rosacrucianismo são os de Claude Debussy (1862-1918) e Erik Satie (1866-1925).

     Do ponto de vista musical, Satie é tido historicamente como o grande agitador que inspirou mais de uma geração de compositores franceses a renovar a manifestação musical de seu país, naquele momento envenenada pelo excesso de academicismo e dominada pela influência da ópera. Portador de uma grande carga de gênio, Satie, através de sua atitude libertária, banhada em um perspicaz humor literário, abriu caminhos para que outros compositores, mais preparados tecnicamente, produzissem as obras máximas da música francesa.

     O melhor da produção de Satie encontra-se nas suas miniaturas para piano, onde identificamos sua genialidade mais completamente manifestada. Era um grande improvisador e suas criações nasciam normalmente de inspirações súbitas movidas por estímulos não-musicais. Muitas de suas composições levam títulos humorísticos, mas é curioso notar, entre suas páginas mais apreciadas, a série de 6 peças para piano que levam o sugestivo nome de Gnosiennes (que poderíamos livremente traduzir por ‘Gnósticas’) que automaticamente nos leva a intuir a preocupação filosófica de Satie, fator igualmente preponderante em sua criação.

     Debussy, por sua vez, é uma figura mais celebrada e é artisticamente mais representativo. Cabe aqui mencionarmos alguns aspectos de sua personalidade e de sua obra, que até certo ponto são indissociáveis. É curioso notar as referências feitas sobre o homem Debussy através do olhar de alguns de seus ilustres contemporâneos. O compositor francês é retratado como alguém bastante decepcionado com a raça humana, e sua tolerância com as “humanidades” foi extinguindo-se conforme foi envelhecendo. Tanto em sua música como em sua vida, manifestou uma perene aversão ao supérfluo e a toda ornamentação inútil. Era a exatidão personificada, conciso no expressar-se e cuidadoso com frases, palavras e gestos, fossem eles musicais ou não. Segundo o crítico de arte francês Gabriel Mourey


Debussy era um ser concentrado que vivia uma intensa vida interior.”

     Nesse sentido, o também compositor Raymond Bonheur recorda que em Debussy


“não havia traços da vulgaridade comum aos artistas, nem mesmo aquela ‘amigável camaradagem’ que freqüentemente oculta intenções clandestinas (...). Ao mesmo tempo, ele demonstrava uma grande indiferença à opinião das massas e, sobretudo, um refinado orgulho que não era mais do que a certeza de estar vivendo de alguma maneira em um plano superior”.


     Por outro lado, o compositor Alfredo Casella deixou um interessante testemunho acerca do Debussy já adulto e pai:


“Até o fim, Debussy permaneceu aquilo que os franceses chamam de ‘grand enfant’ [criança grande]. Aquela mesma inocência maravilhosa e limpidez de sentimento, que são a característica fundamental de sua arte, transpareciam em todos os seus atos e palavras. Com cinqüenta anos, ele se divertia mias do que sua pequena filha Chouchou [Claude-Emma] com os brinquedos que lhe trazia sua mãe.”


     Ainda nesse sentido, observamos esse lado perspicaz, misterioso e algo irônico do compositor quando, a respeito da composição do ballet “La Boîte à Joujoux” (A Caixa de Brinquedos), disse ter se inspirado “extraindo confidências de algumas das velhas bonecas da Chouchou”. Essa pureza infantil foi novamente trazida à tona, em sua personalidade, por sua filha. Ao lado de suas paixões por literatura e filosofia, por exemplo, figuravam o gosto pelo circo, pelo teatro de marionetes e pelos livros infantis de figuras.

     O compositor e pianista Gabriel Pierné relata, em seu livro de memórias, que Debussy, já garoto, tinha particular predileção por objetos delicados, raros, preciosos e diminutos. Possivelmente revela-se já nessa época o perfeccionista que esculpiria com esmero cada detalhe sonoro de suas composições mais tardias. Sua irmã Adèle recorda uma criança que “passava dias inteiros sentado e sonhando com algo que ninguém poderia ter idéia”. Mostrava-se meticuloso na escolha das cores de tudo o que usava e, ademais, era sensível no mais alto grau: a menor coisa poderia animá-lo ou então enfurecê-lo, segundo o testemunho de Marguerite Vasnier, a quem Debussy dedicou algumas de suas canções. Seu temperamento independente e resoluto igualmente já se manifestava desde a juventude. O músico Paul Vidal, também seu contemporâneo, relata que “nada exerce qualquer domínio sobre ele”. Também já cedo, durante sua vida acadêmica no Conservatório de Paris, manifestou sua atração pela poesia simbolista de Baudelaire, Mallarmé e Verlaine. Esses poetas seriam referência constante em sua produção musical, tendo ele musicado algumas das mais sublimes páginas das obras deles. Para ele e para os poetas simbolistas, a natureza esotérica da arte era uma crença central, quase dogmática. Baudelaire, particularmente, foi um referencial constante na produção de Debussy. Recordemos que Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal), obra-prima de Baudelaire, é caracterizada pela exploração deliberada da dualidade da existência, e que vários poemas dessa obra e de outras criações de Baudelaire eram recorrentes na criação debussyana. O compositor ainda assistiria a uma das soirées literárias de Mallarmé, dirigidas para uma platéia escrupulosamente refinada para apreciação de suas produções inclinadas ao misticismo. Não causa surpresa o fato de uma das grandes produções de Debussy para orquestra, Prélude à l’Après-Midi d’un Faune ter sido inspirado no poema homônimo de Mallarmé.
    
     Em 1895, Debussy terminaria sua ópera Pelléas et Mélisande, que merece de nossa parte um olhar mais cuidadoso. De todas as suas composições, essa é a que sintetiza melhor sua estética e seu ideal. Aqui, Debussy subjuga o ímpeto da emoção humana à sobriedade da sua refinada e sutil expressão musical. É um retrato do sentimento humano sem a ação dramática esperada de uma ópera. Sobre essa obra, declarou a cantora inglesa Mary Garden, que interpretou Mélisande por ocasião da prémière da obra:


“(...) tive as mais extraordinárias emoções que já experimentei na vida. Ouvindo aquela música, eu sentia tornar-me alguém mais. Alguém dentro de mim cuja linguagem e alma eram aparentadas às minhas.”


     Sobre o compositor, ela acrescenta ainda:


“Debussy vivia num mundo tão seu onde ninguém, mesmo sua esposa Lilly, com todo seu carinho e adoração, poderia alcançá-lo. (...) Sentava-se ao piano, por uma hora ou mais, e improvisava. Essas horas permanecem como jóias em minha mente. Jamais ouvi uma música assim em minha vida (...). Quão bela e assombrosa ela era, e ninguém além de Lilly e eu jamais a ouviria. Debussy nunca pôs essas improvisações no papel: elas voltaram para o estranho lugar de onde vieram, para nunca retornar. Aquela música preciosa, perdida para sempre, era distinta de qualquer coisa de Debussy. Havia nela uma qualidade muito sua, remota, de outro mundo, sempre dizendo algo à margem das palavras.”


     Tal era o homem, tal era o compositor. Seu credo artístico, como ele mesmo professava, era “o prazer é a lei”.

     Debussy e Satie conheceram-se em 1890 num popular cabaré parisiense chamado “Chat Noir” (Gato Negro). No ano seguinte, iniciaram-se numa fraternidade rosacruz intitulada “Ordem Cabalística da Rosacruz”, recém reestruturada em Paris. Entre aqueles que a reorganizaram, estavam alguns nomes bastante conhecidos, sobretudo pelos martinistas: de seu Conselho Supremo faziam parte Stanislas de Guaita, Sâr Joséphin Péladan, o célebre místico Gérard Encausse, conhecido como Papus, e Augustin Chaboseau. Péladan, que mais tarde deixaria a Ordem por causa de divergências com Papus e fundaria a “Ordem da Rosacruz do Templo e do Graal”, defendia a ideia de que a arte tinha uma missão divina e era o melhor meio de efetivar a reintegração com Deus. A inclinação esotérica de movimentos artísticos como os pré-rafaelistas e os simbolistas aproximou-os naturalmente dessas fraternidades. Os artistas que as integravam buscavam uma reação aos excessos do romantismo e inclinavam-se, portanto, ao mundo do metafórico e do simbólico, mais naturalmente depurados. O poeta Charles Baudelaire, por exemplo, iria abraçar as idéias do místico Emmanuel Swedenborg e aplicá-las na sua produção poética. De uma maneira ou de outra, todos os grandes artistas que gravitavam em torno desses movimentos e estavam associados a essas ordens iniciáticas, principalmente Debussy e Satie na música, eram verdadeiros “místicos da arte”. A realização dos famosos “Salões da Rosa-Cruz”, marco maior do movimento simbolista, tenha sido talvez a maior realização de Sar Péladan nesse sentido.

     Lembremos que, nessa época, nossa Ordem ainda não se havia organizado na estrutura como a conhecemos hoje. Dentro da fraternidade, Satie viria a desempenhar uma função semelhante à de mestre de capela, e dessa maneira produziu obras voltadas para a ritualística da ordem, como Le Fils des Étoiles (O Filho das Estrelas), escrita sobre argumento do próprio Sâr Peladan, e Sonneries de La Rose+Croix (Sons da Rosacruz), que consta de três partes, a saber: Air de L’Ordre (Ária da Ordem), Air du Grand-Maître (Ária do Grande Mestre) e Air du Grand-Prieur (Ária do Capelão). Mais tarde, Satie iria fundar sua própria seita religiosa e aí continuaria a exercitar as excentricidades em que era pródigo.
    
     Quanto a Debussy, se por um lado efetivamente não chegou a produzir nenhuma obra intencionalmente esotérica, é evidente que seu pensamento musical e alguns de seus ideais artísticos e humanos estavam embebidos de uma filosofia superior, que se não chegou a manifestar-se plenamente em sua vida pessoal, foi apenas por força de um caráter impulsivamente independente e por vicissitudes de sua existência material.
Lembremos que Debussy chegou a defender a idéia da criação de uma “Sociedade de Esoterismo Musical”, numa tentativa de criar uma música menos acessível às massas que, segundo seu entendimento, eram incapazes de compreender a verdadeira arte. Indubitavelmente, como em todos os grandes espíritos, sua genialidade advinha de um hercúleo embate na dualidade da existência e se operava sob um temperamento algo felino e solitário, que o apartava de seus iguais. A um tempo forte e sensível, além de extremamente auto-crítico, a exemplo do que transparece na obra de grandes filósofos e pensadores, sua criação abriga uma incontestável simplicidade sob o véu da complexidade. Seus ideais, assim como sua criação artística, jamais se curvaram às necessidades materiais e nunca fizeram concessão ao gosto popular mediano ou àquilo que fosse simplesmente medíocre.

     É notável, e mesmo de cabal importância para entender sua personalidade e sua obra, admitir essa sua inclinação inelutável para os estímulos de inspiração encontrados nos mistérios do Oriente, do Egito e da Grécia Antiga. Prova irrefutável dessa atração são, por exemplo, os prelúdios para piano “Danseuses de Delphes” (Dançarinas de Delfos) e “Canope”, que pode remeter tanto à Canopo, deus da mitologia egípcia, à cidade de mesmo nome situada às margens do Nilo ou ainda à jarra canópica, espécie de vaso funerário utilizado no Egito dos faraós.

     É necessário ainda acrescentar que, renovando todo um sistema musical arraigado na cultura ocidental, Debussy exige a mais do ouvinte, no sentido de uma nova percepção do evento musical, e força sua atenção para a percepção da ‘música que há além da música’. Reorganizando e re-hierarquizando os valores sonoros fora dos limites dos arquétipos característicos tradicionais, sua música provoca o ouvinte e convida as sensibilidades mais aguçadas a experimentar fenômenos extra-sensoriais promovidos por sua paleta sonora. Não nos causa espanto perceber que algumas de suas composições, notadamente o célebre “Clair de Lune” e a extasiante “L’Isle Joyeuse” estão perfeitamente construídas na Proporção Áurea. Nesse sentido, devolve à música sua função primordial e indiretamente evoca um retorno à natureza, que com muita freqüência domina a temática de suas composições. Em outras palavras, o som, individualizado, readquire sua autonomia e seu valor intrínseco, semelhante àquele que os rosacruzes atribuem ao som vocálico, por analogia. Musicalmente falando, com essa atitude Debussy sacramenta o processo iniciado por Satie e descortina o horizonte para uma nova vanguarda musical.


Aqueles ao meu redor se recusam a aceitar que eu jamais poderia viver no mundo cotidiano das coisas e das pessoas. Daí a necessidade irreprimível que eu tenho de fugir de mim mesmo e sair em aventuras que parecem inexplicáveis – porque ninguém sabe quem é este homem, que talvez seja a melhor parte de mim! – Enfim, um artista é, por definição, alguém acostumado a viver entre sonhos e fantasmas...”
(Claude Debussy)

por Raul Passos, 22 de Setembro de 2010
(artigo a ser publicado na revista "O Rosacruz" do 4o. trimestre de 2010)

BIBLIOGRAFIA:
NICHOLS, Roger. Debussy Remembered. Londres. Faber and Faber. 1992.
ROBERTS, Paul. Claude Debussy. Londres. Phaidon Press. 2008.
ROBERTS, Paul. Images: The piano music of Claude Debussy. Portland. Amadeus Press. 1996.
SALZMAN, Eric. Twentieth Century Music: An Introduction. New Jersey. Prentice-Hall. 1967.


DISCOGRAFIA RECOMENDADA:
SATIE: Sonneries de la Rose+Croix (Oeuvres Complètes), Aldo Ciccolini (piano). EMI Classics.
DEBUSSY : Oeuvres Complètes pour Piano, Pascal Rogé (piano). London Records.
DEBUSSY : Pelléas et Mélisande (DVD), Orchestra and Chorus of Welsh National Opera, Pierre Boulez (regente), Deutsche Grammophon.