"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

raulpassos.maestro@gmail.com

3 de dez. de 2008

A LIÇÃO DE SIBIU


Sibiu por si mesma é uma cidade das mais poéticas em que já estive. Por sua importancia histórica também é uma referência. Sibiu é o que Ouro Preto poderia ser, se fosse devidamente conservada e cuidada (ainda assim, amo Ouro Preto! Uma cidades de que mais gosto no mundo). Aqui, onde permanecemos dois dias por conta da conferência sobre arquitetura brasileira do professor Key Imaguire Jr., experimentei um ambiente completamente novo, mesmo se usar como padrão a minha experiência de Romênia.

O que vou carregar comigo para sempre de Sibiu não é nem sequer algo passivel de descrição. Não se trata de algo aprendido com bela arquitetura ou paisagens, e também dessa vez não foi a costumeira simpatia que encontramos no romeno do interior. A marca de Sibiu foi impressa em mim demasiado sutil.
Quando se fez noite, nos deparamos, na Piaţa Mare (ou Grande Praça), com uma feira de Natal, nem grande nem pequena. Nessas cidades, mesmo grandes, a praça continua sendo o coração afetivo do povo. Pouco a pouco, as pessoas começam a chegar e, ao mesmo tempo, no ar começa-se a sentir o doce aroma dos doces romenos e húngaros. Em pouco tempo, o lugar fica repleto. De crianças. Quase metade das pessoas na praça são simpáticas crianças.

No entanto, o que me impressionou foi que, subitamente, enquanto caminhava por entre elas, percebi que não havia nenhum barulho. Tampouco havia risos ou vozes altas. A música, vinda de um palco instalado pela prefeitura, distante alguns metros, era apenas um delicado pano de fundo. Nada de Jingle Bells, Noite Feliz, White Christmas ou qualquer outra dessas musiquetas aborrecidas que ouvimos todos os anos da mesma maneira. Percebi que o povo não tinha necessidade de exteriorizar nada, e que o comportamento feliz deles podia ser sentido através de gestos discretos, sorrisos espontâneos, embora silenciosos e, mais importante, por meio das crianças. Absorto inteiramente como espectador de uma peça de teatro sem som, vendo os pequenos sobre o carrossel, em companhia dos pais ou passando numa discreta alegria com algodão doce nas mãos ou ainda animadamente patinando sobre o rinque de gelo, tomei consciência da importância de muitas coisas, sobretudo da simplicidade. Talvez eu não consiga me expressar devidamente mas, como avisei de antemão, foi algo muito difícil de conceituar, quanto mais descrever, posto que foi para mim como uma grande pausa no tempo. Também não foi a descoberta dessa simplicidade banal das coisas, que tantas vezes hipocritamente enfatizamos ser a coisa mais importante do mundo. Esteve além, num ponto mais sutil. Talvez tão sutil que nem pude sentir ou compreender devidamente. E embora se trate de uma verdade absoluta, o sentimento deu-se de maneira impermanente, e creio que mesmo se retornasse a Sibiu uma centena de vezes na vida não mais lá poderia encontrá-lo. Pelo menos não dessa maneira.
Ainda muito mais poderia falar de Sibiu: a efervescente cultura daquela cidade, o nostálgico crepúsculo e muitas outras coisas. Mas creio que o mais importante de tudo o que achei por entre as estreitas ruas da cidadela foi essa certeza das coisas elementares, que talvez outros possam entender diferentemente, mas que ainda assim está muito distante da nossa habitual superficialidade.

por Raul Passos, em 03/12/2008.

21 de nov. de 2008

BABY, TAKE ME BACK TO PIAUí! [ou IMPRESSõES (nada) SERESTEIRAS]...

Passados os vendavais e as tormentas, seguimos a caminhada numa eterna tentativa de aperfeiçoamento. E olhem que este mês de novembro parece não acabar...

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Esta frase titulo juro que escutei claramente como ela aí se apresenta, na festa de aniversario da revista de arquitetura Igloo, para qual Renata e eu fomos gentilmente convidados ontem a noite. Numa verdadeira (e agradabilissima) Babel musical, apareceu esse techno de Teresina!

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Muito da poesia dos primeiros meses na Romênia extinguiu-se ou ficou restrita ao interior do país, onde sempre, em todas as situações, encontramos pessoas amáveis, gentis, prestativas e polidas, ao contrário da realidade dessa capital, que beira ao caos. Por vezes, durante esse mês, o peso do emocional das coisas, somado a habitual rudeza e falta de cortesia bucarestina me deixou imensamente desgostoso com tudo e com todos e quase as portas de jogar tudo para o alto. Felizmente, também as exceções foram numerosas e ainda nos permitem acreditar num futuro melhor (para nós...)

***

Nos ultimos tempos, tive a oportunidade de conhecer algumas simpáticas cidades do interior da Romênia:

Sinaia, uma famosa estação de esqui que, mesmo agora antes do inverno, encanta por suas paisagens outonais e por seus dois belos castelos, Peleş e Pelişor. Em companhia da Renata e mais duas amigas brasileiras, Janaina, de Belo Horizonte e Vivian, de Sampa, passamos um belo fim de semana nessa cidade, apesar da desconfortável viagem de trem (quem tem pouco dinheiro, viaja de terceira classe. Ou em pé). Nesse ponto da Romênia, as pessoas estão muito bem preparadas para receber turistas. E, claro, avisa-los para não permanecerem nas ruas depois das 7 da noite, quando os ursos descem das montanhas para buscar o que comer. Isso inclui turistas desavisados...

Drăguşeni, onde a familia da Elena nos recebeu maravilhosamente seguindo a tradição da recepção com pão e sal. Passamos nessa estancia tipica um fim de semana muito agradavel junto ao staff da Embaixada. Aqui, a poucos quilometros da fronteira com a Ucrânia, realmente pode-se dizer que estamos em outro país, onde as pessoas são biotipicamente diferentes da maioria dos romenos. Nosso amigo Fernando aqui erigiu uma aconchegante pousada bem a maneira campesina, com direito a forno de lenha e aquecimento da casa pelo mesmo sistema. Pudemos comprovar a excelência da gastronomia local: kozonak (pão doce recheado com nozes e mel), placinta (torta folhada), palinca (cachaça!), ţuică (mais cachaça!!!) e por aí vai... A noite, a Elena "tocava" os homens da casa para ir buscar lenha para mantermos o aquecimento da casa. A localização da pousada é a seguinte: um grande terreno descampado, com plantações nas margens, nenhum vizinho imediato e, mais distante alguns metros, a rodovia. De noite, com a bruma habitual, e acrescido ao simples fato de estarmos na Romêeeeeeeeenia, temos todos os ingredientes para um filme de terror. Esse era o cenário em que Fernando, eu, Sérgio e Rubens atuavamos! Foram realmentes dias de muita descontração e alegria.

Braşov, onde realizei meu primeiro concerto em terras européias! Essa é uma cidade que preservou seu charme medieval e é uma das pérolas da Transilvania. O concerto, no qual tive a honra de introduzir aos romenos nomes até aquele momento desconhecidos para eles (Francisco Mignone, Claudio Santoro, Brasilio Itiberê...), teve suporte oficial da Embaixada do Brasil em Bucareste e teve a presença de autoridades. Junto com a cantora Irina Sarbu, que dividiu o palco comigo, desfrutamos de uma amabilissima recepção por parte da Casa Mureşenilor, onde realizou-se o recital.


Târgu Neamţ, pequena cidade na região central do país.

...e mesmo em Bucareste desfrutamos de muitos bons momentos, como por exemplo o concerto dedicado ao nosso amigo, compositor Sorin Lerescu.

Nos últimos dias, tenho me dedicado ao aprendizado do romeno (que já está bastante melhor!). Tenho ido bastante a concertos (todos os dias tem pelo menos um. Fui presenteado por uma amiga do Fernando, responsavel pela parte de relações internacionais da Radio Romania, com um passe de livre acesso a todos os concertos). Desta maneira, tenho presenceado interpretações memoráveis de grandes obras. De resto: mestrado, estudo, compras e comida, o que não é absolutamente algo a se lastimar!

Com imensa saudade, deixo o meu abraço fraterno a todos!

La revedere!

17 de out. de 2008

BUCARESTE É...

...carros estacionados sobre a calçada, de frente, de trás, atravessados e até na diagonal.

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...floriculturas, bancos e casas de cambio a cada 10 passos. Em compensação, se você precisar de uma banca de jornais ou de uma lavanderia...

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...uma eterna possibilidade de que o atendente do guiche seja a pessoa mais amável do mundo. Ou a mais estúpida.

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...queijos deliciosos, legumes apetitosos e frutas intragáveis.

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...velhinhas pedindo dinheiro nas escadarias do metrô.

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...a moda mais esquisita do planeta.

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...cogumelos baratíssimos! E deliciosos!

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...concertos, festivais, recitais, teatro e ópera todos os dias.

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...população de cães e gatos superior a de pessoas. E suas excrecoes igualmente numerosas pelas calcadas...

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...laptops a 800 lei e uma caixa de sucrilhos a 13 lei!!! Tirando arroz, batata e papel higiênico, salve-se quem puder!

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...viajar no fim de semana pra Sinaia e descobrir que existem romenos simpaticos e ar respiravel!

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...tomar banho 4 vezes por semana e achar que o Brasil fica na Europa...

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...um transito de fazer chorar. Buzinas em tempo integral. Mas voce consegue atravessar uma rua, por mais movimentada que seja, apenas colocando o pe na faixa!

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...enquanto estudante, pagar 11,5 lei e poder andar livremente de metrô durante um mes, ou entao pagar 25 lei e andar de ônibus durante o mesmo periodo.

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...3 fumantes para cada 4 habitantes.

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...achar que no Brasil se fala espanhol.

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...fim de tarde no maravilhoso Parque Cismigiu, com direito a happy-hour depois, regado a deliciosa "tuica", aguardente feito com ameixas.

(continua... claro!)

por Raul Passos (com a colaboracao de Renata Sobreira e Renata Gobatto)

13 de out. de 2008

PENSAMENTOS SOBRE A DESIGUALDADE

A pobreza dos romenos me parece mais triste e comovente que a dos brasileiros, e ainda não sei o porque. E' possivel ainda que eu tenha essa impressao acentuada pelo fato de estar longe de casa e, justamente por isso, carente de algum tipo de compensacao emocional, mas o fato e' que, na minha vista, a expressao das velhas senhoras de veu preto nas escadarias das estacoes de metro e dos que pedem "bani pentru un putin de paine" dentro dos onibus me e' assustadoramente lancinante.

Gostaria muito de escrever, numa tentativa modesta de ser/estar cronista, mais sobre as belas surpresas que essa pais tao distante e tao proximo me ofereceu, mas nada me parece mais elementar e necessario do que esse expressivo retrato romeno contemporaneo.

Ha 4 dias, pela manha, enquanto no Brasil os pobres ainda dormiam o sono dos injustos, atravessando a principal avenida de Bucareste pela estacao de metro, nas escadarias me deparei com a cena que descrevi. Enquanto caminhava la' embaixo em meio ao formigueiro humano apertado entre os tapumes das barulhentas obras da estacao (nesse momento, Serge Gainsbourg cantarolava nos meus fones de ouvido para atenuar o ruido), me assustei com minha subida tomada de sensibilidade a isso. Por que no Brasil essas cenas passam tao corriqueiras pelo nosso campo de visao? Porque a pobreza europeia, pelo simples fato de ser europeia e' mais injusta e dolorosa, "pur şi simplu", como dizem os romenos?

Nao pretendo discorrer aqui rumo a qualquer tipo de explicacao para isso, que de todo seria inocuo, mesmo porque pode ser uma impressao unicamente deste brasileiro, mas e' inelutavel tentar justificar.

Creio que os romenos ainda nao sabem lidar com o implacavel e duvidoso capitalismo, aqui inaugurado com a queda ainda recente da ditadura comunista. A poeira dessa ruina ainda se respira no ar, junto com as nuvens de cigarro onipresentes. Nao sabem fazer uso do dinheiro, eles, que ainda desfrutam de uma certa estabilidade, preludio da entrada do Euro. Sao um povo que despreza os centavos. Nao e' raro ver pessoas deixarem cair as moedas e nao juntar, e chega a ser ofensivo dar moedas como esmola aos pedintes, como as senhoras das escadarias.

Para muitos, essa cena pode ser pouco representativa, mas consegue resumir meu sentimento a respeito, depois de um mes nessas terras. Talvez esta cena tambem explique, pelo menos em parte, a enorme discrepancia, que beira o non-sense, no preco de alguns bens de consumo. Para o outro lado da fronteira mais movimentada, na Bulgaria, ha pouco mais de 60km daqui, dizem que os absurdos sao ainda maiores, e e' um pais ainda menos favorecido.

Entao lembro-me que ouvi da boca de uma amiga, ja ha algum tempo, uma frase de Nietzsche que diz o seguinte: "Na sociedade filisteia sabe-se o preco de tudo mas nao sabe-se o valor de nada." Isto me parece ser nao um retrato, mas um despretensioso desenho dessa sociedade, tao latina por excelencia e que justamente por isso padece dos mesmo males da nossa latinidade sul-americana.

2 de out. de 2008

DIAS DE VINHO E ROSAS


Ta certo, admito: o vinho é grego e as rosas crescem apenas no parque, mas sao muito bonitas de se ver. Na alameda principal do Parcul Tineretului, tem um imenso canteiro com toda a variedade possivel e imaginaria de rosas. Quanto ao vinho romeno, bem... ainda nao posso dizer que tenha provado, mas existe uma variedade enorme e os precos vao do mais acessivel ao impensavel. Alias, como varias coisas aqui. Numa loja de eletronicos, encontramos impressoras multifuncionais por 170 lei (R$ 100 +/-), cameras digitais por 190 lei e laptops por 800 lei. Impressionante. Mas incrivel mesmo é o preco de um telefone celular, modelo mais simples: 130 lei. Comprei num supermercado uma colecao com 40 cds com a obra de Mozart e me custou apenas 27 lei!!! Se a Romenia fosse na America do Sul, teria mais muambeiros do que no Paraguai...
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Por outro lado, roupas n
ao sao abaratas, a menos que sejam compradas em supermercados.
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O transporte publico
é bastante eficiente. Trens urbanos e onibus custam 1,30 leu e o metro, com ticket para 2 viagens custa 2,20 lei. Se comprar um para 10 viagens, sai por 8,00 lei. O problema é que perto das 11 da noite ja nao ha mais onibus nem metro...
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Oficialmente as aulas comecaram, mas na verdade o que houve apenas foi uma recepc
ao para os alunos, com direito a concerto e tudo o mais.
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Depois de mais de 20 dias de imers
ao cultural, outras coisas ficam mais evidentes sobre o pais. Como eu ja tinha dito, Bucareste poderia ser uma cidade do Brasil. O que ocorre mesmo é que a Romenia é um pais de contrastes. Existem muitos pedintes nas ruas e nas estacoes de metro, sobretudo velhas senhoras. Os jornais noticiam crises financeiras e corrupcao (nao, nao estou falando do Brasil agora...) e em epoca de eleicao, como agora, a ferida fica mais aberta. Fala-se igualmente em greves e paralisacoes.
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Com a chegada da Renata, as coisas ficaram surpreendentemente mais faceis aqui. Por que sera, hein???

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Uma outra boa novidade: ja tenho dois concertos arranjados no interior do pais, na cidade de
Braşov.
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Duas atendentes de correio ja me perguntaram se o Brasil fica na Europa (viram? Poderiam ter perguntado se era na Africa...).
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Por ora, s
ao esses os meus pareceres. Volto em breve com mais fotos e causos pitorescos dessa terra lindamente estranha, onde um povo tao parecido com o nosso tambem come o pao que o vampiro amassou.

La revedere!

23 de set. de 2008

UM FIM DE SEMANA EM FIERBINTI


Fierbinti fica a pouco mais de 35 quilometros a nordeste de Bucareste e, ao mesmo tempo, parece estar em outro planeta. Nesta simpatica vila, nosso amigo Fernando erigiu uma simpatica casa de campo, rustica, charmosa e acolhedora. Do andar de cima, onde me instalei, uma gigantesca janela da vista para o Lago Dridu, que tem 12 quilometros de extensao Na parede da escada que da acesso para o andar superior, fotos de antepassados do Fernando e da Elena. Brinquei com ele, dizendo que, como naqueles desenhos animados, elas dao a impressao de que vao mexer os olhos, nos seguindo! Brrr... Coisas da Romenia!

Por vizinhos, temos a simpatica dona Sandina e sua igualmente simpatica gansa de estimacao, a Bujorel! Fomos visita-los no domingo pela manha, e ela estava com a familia colocando uma imensa carroca carregada de uvas para moer e, apos isso, colocar num tonel para fabricacao de vinho. Enquanto Fernando e Elena conversavam animadamente com ela (com a Sandina, nao com a gansa...), dois parentes dela me explicavam o processo de fermentacao da uva. Fiquei estupefato quando percebi que o romeno falado pelos camponeses me soa muito mais claro do que o falado em Bucareste.

Quando ja anoitecia, estavamos a mesa degustando um delicioso feijao (!) feito a maneira romena pela Elena quando tocou o telefone. Ao cabo de alguns instantes, Fernando voltou dizendo: "O Conselheiro Jorge para voce, no telefone". Atendi. O conselheiro me contava sobre uma amiga, professora de ballet no Teatro Nacional da Romenia, que vive sozinha numa casa no centro de Bucareste e que dispunha de um quarto para alugar. O melhor de tudo? Fala frances fluentemente. Nesse momento, visualizamos a possibilidade de me instalar na casa dela, para nao haver a necessidade do deslocamento diario de Fierbinti a Bucareste, conservando nao obstante a possibilidade de ir vez por outra para o vilarejo na casa do Fernando para estudar no piano dele, mais a vontade, e la ficar por uns dias.
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Segunda-feira, 9 da manha. Ja na entrada de Bucareste, um transito digno de Sao Paulo retardava a nossa chegada. Eu, incrivelmente tenso por conta de saber o resultado do exame de admissao, que havia sido na sexta-feira, sentia passar milhares de coisa pela cabeca.
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Perto do meio-dia, cheguei na universidade e encontrei imediatamente o professor Dimulescu, chefe do departamento de piano, pessoa muito prestativa que me havia recebido para o exame e que me havia explicado o funcionamento do mestrado. Quando perguntei sobre o resultado do exame, com o sorriso que habitualmente ele me dispensava disse, em bom frances: "Voce esta admitido. O exame foi apenas para sabermos seu nivel de piano. Desejo grande sorte a voce".
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Nao senti a euforia esperada, mas um alivio sem precedentes. Fui a secretaria onde as sempre gentis e risonhas secretarias, Mariana, Liliana e Georgiana se ocuparam de me ditar as requisicoes que eu deveria fazer (em romeno!) solicitando matricula nas disciplinas de Musica de Camara, Acompanhamento e Piano. Aguardo, por fim, o comeco das aulas, em 1 de Outubro.
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De tarde, cheguei a casa da professora Adina. Surpreendeu-me com sua comunicabilidade e gentileza. Mostrou-me meu quarto e as demais instalacoes. Nao podia ser melhor. Aqui estou muito bem alojado e posso acessar a internet. Estou proximo da universidade e do centro (e do Fernando, havendo emergencia...)

Apenas a noite, ja deitado e tentando ler uma biografia da genial pianista Clara Haskil (em romeno), subitamente me dei conta do fato de ser um mestrando agora, e de como as coisas tem maravilhosamente acontecido...
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Assim vou me despedindo de mais uma pagina dessa rapsodia, direto aqui da Romenia, terra onde nao existem cobradores de onibus, onde as ciganas se vestem com rara beleza, onde as portas abrem sempre pro lado de fora e, nao menos importante, onde os pimentoes sao redondos e as cebolas sao compridas!


por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 23/09/2008

20 de set. de 2008

CU UN LITRU DE VIN NU SE MOARE DE SETE...


...foi a frase que mais repeti desde que pisei em solo romeno, e todos se impressionam com as semelhancas de nossa lingua. Ontem, sentados no terraco do hostel, apos um jantar indiano, estavamos um australiano, um ingles, uma romena, um holandes, um frances e eu, servindo de representante da lingua de Camoes e de Guimaraes Rosa, e nesse momento com um livro de poesia do Drummond nas maos. A lingua exerceu um fascinio muito grande nos presentes e a mim mais ainda a fluencia na leitura e no entendimento mostrados pela nossa amiga romena.

O tempo comecou a esfriar aqui e ja comecamos a temer pelo inverno. Por outro lado, os parques de Bucareste estao ganhando cores especiais.

Ontem ainda, conheci pessoalmente o compositor Sorin Lerescu, um dos grandes incentivadores da minha vinda a Romenia. Acredito ter poucas vezes na vida cruzado com alguem de tamanha amabilidade e cortesia. Convidou-me a frequentar sua classe de composicao, como maneira de me aperfeicoar nesse braco da musica que, como todos sabem, ate o momento encarei com um certo temor e receio.
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Amanha deixo o hostel e me instalo em Fierbintii. Deixo o transito caotico do centro de Bucareste por algo mais bucolico.
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Estou descobrindo maravilhosas variacoes da culinaria local, e constatei que e perfeitamente possivel, segundo os dizeres do Fernando, sobreviver a pao e queijo se necessario. Sao maravilhosas as versoes desses dois alimentos. Entre os queijos sao particularmente deliciosos o cascaval e o feta, uma especie de queijo branco com um gosto bem acentuado.
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Hoje, pela hora do almoco, logo apos o exame na universidade, fui a um restaurante num subsolo bastante modico e apreciado por estudantes e acho que, pela primeira vez, pude enfrentar um dialogo sem dar na vista (ou na voz) ser estrangeiro.
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Sao essas as novidades para o momento! Aguardem as fotos, em breve!

La revedere!

por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 19/09/2008

15 de set. de 2008

BUCARESTE, UNIVERSO PARALELO (parte 2)



Depois de quatro dias nesta incrivel cidade, as coisas, que ja nao eram dificeis, ficam divertidas. Inclusive quando se trata de arriscar falar romeno o tempo inteiro, inclusive na superlotada estacao de metro da Piata Romana, e enfrentar um metro pra la de turbulento.
* * *
Mais a vontade para sair, nao preciso mais ficar colado no mapa. As ruas principais ja se desenharam na minha mente e consigo passear com mais seguranca. Fui a Libraria Noi, e la descobri tres coisas: 1) a melhor, mais fascinante e completa livraria da Romenia nao tem um mapa sequer de Bucareste!!! 2) a palavra mais bela da lingua romena (entre as que conhecia ate agora): "belestriza", que significa "literatura". 3) um dicionario portugues-romeno, que eu nao acreditava existir!
* * *
Na universidade, fui muito bem recebido pela assistente de assuntos internacionais, que deu conta de toda minha documentacao, facilitou-me a vida no tangente ao pagamento das taxas (poderei faze-lo em mais suaves prestacoes!) e, de quebra, providenciou para que eu pudesse usar uma sala com piano por dois dias antes do exame, que sera na sexta-feira.

Fui a Embaixada do Brasil, e descobri, maravilhado e aliviado, que nosso pais e o mesmo em qualquer lugar: pessoas alegres, bem dispostas e comunicativas. Tive o privilegio de almocar com o nosso embaixador, que e uma pessoa de rara cultura, sensibilidade e diplomacia, e me fez sentir mais seguro e confiante. La pelo meio da tarde, chegou finalmente meu querido Fernando Klabin, com quem passei agradabilissimas horas ate o fim do dia, num papo divertidissimo e, e claro, na Ultima Flor do Lacio, nossa lingua portuguesa. Na embaixada ainda conheci o nosso adido cultural, Jorge de Sa, fantastica figura, a esposa do Fernando, Elena, uma romena que fala portugues perfeitamente e faz uma tortinha romena chamada placint, alem do Ion, romeno naturalizado brasileiro, que e o outro motorista da casa.

Ontem ainda pude, a conselho da Andreea, que e a pessoa que toca esse hostel, almocar num pitoresco e deslumbrante lugar, que existe desde 1879: o restaurante Caru Cu Bere. La provei dois dos mais tradicionais pratos romenos em sua versao vegetariana: a ciorba (sopa) e a mamaliguta (uma polenta com queijo e ovo). Deliciosos!!!!

Satisfeito e feliz da vida, vou encerrando essa segunda parte, hoje sem gatos no colo mas com uma chuva tremenda la fora!

La revedere!

por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 15/09/2008

12 de set. de 2008

BUCARESTE, UNIVERSO PARALELO



Foi como acordar de um sonho e se descobrir dentro de outro... A realidade da qual saimos muitas vezes e a mesma na qual entramos.
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Depois de mais de um dia chacoalhando em avioes, passando por interrogatorios nas alfandegas, ja estava bastante cansado e um pouco fora da realidade, quando a voz do comandante substituiu a musica e eu olhei para fora. Antes de conseguir soletrar "B-U-C-A-R-E-S-T-E", a cidade emergiu da massa de nuvens. Reconheci o aeroporto no instante do pouso e, confesso, esse foi realmente o primeiro momento em que me dei conta de onde estava e de que de fato la estava.
* * *
O policial da imigracao lancou um olhar intrigado sobre meu passaporte, como quem diz "Nao e possivel" e, atonito, pousou energicamente o carimbo sobre meu visto. Retirei minha bagagem na esteira e, quando abriu-se a porta do desembarque, com um grande alivio vi a plaquinha com meu nome nas maos de um sorridente brasileiro. Garibaldi, cearense e extremamente bem-humorado, motorista do embaixador, foi incumbido de me conduzir nas primeiras horas. Levou-me a um cafe no centro, onde pude trocar meus euros por lei.
* * *
O mais estranho em Bucareste e a incrivel semelhanca com qualquer cidade brasileira de grande porte. A cidade ela mesma e o povo. Em geral, aqui predios historicos coexistem com outros erigidos durante o regime comunista. Muitos deles sao imensos e escuros por dentro, os publicos especialmente, embora o cinza domine a paisagem. Casas de cambio a cada 10 passos, pessoas normalmente educadas e um transito digno de Sao Paulo. Estaciona-se de qualquer jeito, inclusive sobre as calcadas. Em compensacao, os motoristas param nas faixas para que pedestres atravessem mesmo em grandes avenidas, os bulevardul. Aqui, carros novissimos e de ponta circulam conjuntamente com os horriveis dacia, carros tenebrosos muito parecidos com os Lada, e que rem etem ao tempo do comunismo. Trens eletricos e pre-historicos circulam no meio da rua.

Apos me instalar no simpatico Butterfly Villa Hostel (tem varios gatos passeando pelo predio e enchendo os espacos de miados. Nesse exato momento, tem 3 dormindo no meu colo...) e tomar meu primeiro banho bucarestino, sai pelas ruas. Muitas bandeiras, da Romenia e da Uniao Europeia, sempre justapostas na entrada dos grandes predios.
Fui a um simpatico cafe/livraria, tomei um suco de laranja (que, aqui alias, e sempre feito com grapefruit. Portanto, vermelho!), arrisquei algumas palavras em romeno na rua e sempre fui respondido com sorrisos reconfortantes. Fui a um supermercado e observei coisas interessantes: optei por um sanduiche vegetariano e fui surpreendido por um queijo branco ("branza"), muito parecido com o nosso Minas Frescal, porem um dos mais deliciosos que ja provei. Experimentei uma cerveja romena, de excelente padrao e que me custou 1,89 lei, ou seja, algo em torno de R$ 0,90, um pouco maior do que a nossa latinha.
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Bananas? Sim, encontrei por aqui. Custam 4,70 lei. Cada!!!!
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Feijao, pra alegria geral da nacao, segundo o Garibaldi, tambem tem, e e possivel comer todo dia. (suspiros de alivio!!!!)
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A maior dificuldade foi comprar um cartao telefonico. A vendedora, no quiosque, com o maior jeito de professora primaria, quando compreendeu o que eu queria, estendeu-me o cartao e uma nota de 10 lei e disse com um sorriso enigmatico "cartela telephonica. Romtelecom". Hoje, no segundo dia, arrisquei: "O cartela telephonica internationala, va rog!", e fui mais rapidamente respondido.
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Liguei para Alexandra, que me atendeu com uma voz de grata surpresa quando eu disse "Raul Passos, from Brazil". Jantamos hoje, numa animada conversa de afinidades e afastamentos entre a cultura romena e a brasileira.
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Os ciganos nao sao tantos como fazemos supor no Brasil. Eles estao na verdade bem misturados na populacao e entre os poucos que identifiquei como tal, estao as vendedoras de flores.
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Hoje pela manha, tomei cafe com um casal de simpaticas polonesas (!), bastante divertidas e interessadas sobre o Brasil. Dei a elas de presente 25 centavos de real, e elas me deram em troca 50 centavos de Zloti. Creio que sai ganhando no cambio...
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Passeando pela Bulevardul Nicolae Titulescu, de sacola de mercado em punho e mochila, mastigando um generoso sanduiche, finalmente tive a sensacao de estar em casa, no meio dessa nova paisagem.

Estes foram resumidamente meus dois primeiros dias. Saibam que estou bem e espero que todos no Brasil tambem estejam!
La revedere!
por Raul Passos, em Bucareste, Romenia, 13/09/2008

30 de ago. de 2008

AFINIDADE


A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos. O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido. Afinidade é não haver tempo mediando a vida.

É uma vitória do adivinhado sobre o real. Do subjetivo sobre o objetivo. Do permanente sobre o passageiro. Do básico sobre o superficial. Ter afinidade é muito raro.


Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar. Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas. O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.


Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam. É ficar conversando sem trocar palavra. É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.


Afinidade é sentir com. nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo. Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado. Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.


Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo. É olhar e perceber. É mais calar do que falar. Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.


Afinidade é jamais sentir por. Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo. Mas quem sente com, avalia sem se contaminar. Compreende sem ocupar o lugar do outro. Aceita para poder questionar. Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.


Só entra em relação rica e saudável com o outro quem aceita para poder questionar. Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar, não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é. E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso. Isso é afinidade. Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona. Questionamento de afins, eis a (in)fluência. Questionamento de não afins, eis a guerra.


A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele. Independente dele. A quilômetros de distância. Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar. Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar, Por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos. Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos, veremos ou falaremos.


Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem para buscar sintomas com pessoas distantes, com amigos a quem não vemos, com amores latentes, com irmãos do não vivido?


A afinidade é singular, discreta e independente porque não precisa do tempo para existir. Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu o vínculo da afinidade! No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação exatamente do ponto em que parou. Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas nem pelas pessoas que as têm.


Por prescindir do tempo e ser a ele superior, a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente. Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós, para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.

Sensível é a afinidade. É exigente apenas de que as pessoas evoluam parecido. Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau, porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.


Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir restituir o clima afetivo de antes, é alguém com quem a afinidade foi temporária. E afinidade real não é temporária. É supratemporal. Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta, ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade. A pessoa mudou, transformou-se por outros meios. A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas, plantios de resultado diverso.


Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças, é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quanto das impossibilidades vividas.


Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou, sem lamentar o tempo da separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.


(Arthur da Távola)

19 de ago. de 2008

ÁGUAS DE JULHO

por Raul Passos
17 de Setembro de 2003

Não estava chovendo em Curitiba por aqueles dias. Fato que, para um montanhista, é carta branca para se embrenhar no mato. Somado a um tanto considerável de motivação, era o que faltava para que, mais uma vez, o trio (o mesmo) que se havia entrevado na travessia Itapiroca - Cerro Verde - Tucum em plena véspera de ano novo, se decidisse a enfrentar uma semana no Pico do Paraná... Ah, mas quem pode ter certeza do tempo na capital paranaense? Foi precisamente o nosso erro, ou melhor, o descuido que transformou nossa semana numa molhada epopéia.

Partimos de Curitiba no domingo, dia 13, a uma temperatura de 7 graus (ainda tépido para o inverno curitibano!). O nosso querido Aranha, para variar um pouco, com a mochila mais pesada do que ele mesmo (até hoje não consegui entender como é possível uma mochila pesar tanto. Sempre o vejo a carregar e ainda não descobri onde ele põe o chumbo!). "Meu termômetro está marcando 10", relatou ele. Os céus estavam promissores. Prometiam chuva, para nosso desespero.

Começamos a subida bastante animados. O Marcelo nos motivava ainda mais: atacaria de mestre confeiteiro fazendo uma sobremesa surpresa no cume. O Aranha subiu aos suspiros (apaixonado?). A tempos que o não via assim! Ele com certeza se utilizou desse recurso para esquecer do container que carregava no lombo. De cada 10 palavras que falava, 11 eram "ela". Eu, com a mochila mais leve, no entanto já sentia arrepios pelo aquaflex que teria de carregar a partir do A2. Habituado a carregar a comida, ainda não me entrava na telha a idéia de subir com a água.

Um pouco depois do cruzo Caratuva - PP, encontramos escoteiros. Vinham em bando. As meninas com seus travesseiros e ursinhos de pelúcia, fofinhos e cheios de pico-pico. Ainda um pouco mais à frente cruzamos com o pessoal do "Nas Nuvens", grupo de montanhismo. Todos se surpreendiam com o trio que, enquanto tantos desciam, estavam empenhados em subir e, pior, permanecer uma longa semana que já prometia ser, por assim dizer, não das mais secas!

Já começava a ventar forte e a temperatura baixava consideravelmente ao cair da noite, quando atingimos o Abrigo de Pedra, perto da última bica. Enquanto Marcelo e Aranha buscavam água, fiquei resguardado com nosso equipamento. Foi o meu pior erro: sentia o vento entrar nos ossos e aquilo foi congelando meu rosto e meus dedos. Tentei mexê-los, mas já perdiam a agilidade notória de alguém que, até o inicio da subida, era pianista por profissão. No entanto, naquele mesmo lugar senti uma sensação incrível de paz, como jamais houvera experimentado. Por vezes não se escutava sequer o vento (talvez por já me haver congelado as orelhas), mas o fato é que aquele silêncio foi uma das coisas mais sensacionais que já me aconteceram em meus 20 aninhos de vida!

Quanto mais se contempla, menos se reclama. Mas o fato é que eu teria de passar a noite inteira contemplando esse oceano de paz para não reclamar daqueles litros d'água que me ceifariam as costas nos metros restantes até o cume. Ali percebi o quanto as pedaladas que deixei de dar nas (poucas) tardes quentes de maio em Curitiba me fizeram falta. O Aranha, que subia como o próprio artrópode, ainda se ofereceu para carregar 4 dos 10 litros que eu levava. E eu, além de perplexo com minha ineficiência para burro de carga, estava atarantado em ver meu quase irmão subindo como um serelepe. O Marcelo, a essa altura do campeonato (uns 1700m) já tomava distancia.

"Cheguei ao meu limite", foi meu primeiro pensamento ao atingir o cume. Caminhava como um bêbado que tentava fingir estar sóbrio, quando contornei a ultima pedra, onde, desconhecendo o quanto faltava, decidi parar para retomar o fôlego. O Aranha, que mais tarde me confessou que também não lembrava o quanto faltava naquele ponto (insignificantes 5m!!!), tratou de não me deixar parar. De fato, se parasse, eu, que a essa altura não sentia nem braços nem pernas, teria muito mais dificuldades para chegar. O famoso "uhuuuuu!!!" que o Marcelo teve a honra de ser o primeiro a gritar quando chegou lá em cima, a 1.877m, me soou tão distante como se eu estivesse a quilômetros dele. A distancia que nos separava então era de 15m. A sensação térmica no cume era de 0 grau. Apesar dos membros lassos, tinha consciência do quanto era maravilhoso estar no ponto mais alto do sul do Brasil. Dormimos os três como nenéns, tamanha a fadiga. Até nos esquecemos de assinar o livro de cume.

E tempo para isso não nos faltaria no dia seguinte. Choveu a cântaros. Água à Bangu, mesmo... E, ironicamente, nossa maior preocupação era com o estoque de água (maldição eterna ao aquaflex!). Confinados os três ao interior da barraca, passamos o dia a filosofar e, numa brecha intermitente da chuva, a preencher o livro de cume com nossos devaneios (o Mal da Montanha...). "10 graus está marcando o termômetro", disse o Aranha. "Acho que esse teu termômetro está viciado, hein?", comentei. O chimarrão foi outra feliz idéia que nos ajudou a passar o tempo. Mais três montanhistas atingiram o cume neste dia (na certa pensando que estariam sozinhos naquele dilúvio. Mas a Arca de Noé sempre reserva surpresas. Esta nossa até aranha tinha...). Permaneceram apenas um dia e, possivelmente, desceram escorregando.

A constante neblina não nos permitiu sequer fotografar o amanhecer do dia 15. Segunda surpresa desagradável, posto que, qual não foi o nosso assombro ao constatarmos, no café da manha, a primeira delas: um infame ratinho da montanha havia dado cabo de alguns legumes e (mais previsível) do queijo ralado. "Bem que eu escutei um barulho de sacola se mexendo, de madrugada", relatou o Aranha, indignado. No entanto, mais importante agora, era que havia estiado. Decidimos aproveitar a brecha (e a temperatura de 10 graus, no termômetro do Aranha) para ir até o cume do Ibitirati. Passamos pelo União e, ao chegarmos ao topo com nossas maquinas fotográficas em punho, fomos surpreendidos pelo visual. Não vou nem fazer um relato muito extenso, pois a imagem fala por si. Maravilhoso!!!

Foto: Marcelo Brotto

Faltou filme para registrar a catarse de vida, cores e harmonia que compunham a fenomenal paisagem a que nos víamos integrados. "Valeu nossa semana", comentei com meus botões e, mais tarde, com Marcelo. Na volta, entre o Ibitirati e o União, nos detivemos por um instante a contemplar o vale que se precipitava a nosso lado, na forma de uma garganta colossal e profunda, a menos de um passo da estreita trilha onde estávamos. Aquela noite nos abraçou com uma incrível sensação, misto de satisfação e glória, que nos faria dormir intensamente, não fosse o inconveniente do rato. Mergulhamos em nossos sacos de dormir atentos a qualquer ruído de sacola e armados para cacetear o roedor no meio da noite, se ele ousasse aparecer na trincheira mais alta do Sul do Brasil. Eu, que estava com os pés envoltos por duas sacolas para amenizar o frio (de 10 graus), adormeci um pouco mais preocupado, atormentado pela idéia de, ao me mexer inconscientemente durante a madrugada, ser despertado por uma saraivada de porrete nos calcanhares.

Uma aurora alucinante nos saudou por volta das 7 horas do dia 16. Foram poucos os minutos que tivemos para registrá-la, menos nas lentes que em nossas memórias, pois a neblina nos envolveu novamente. Fizemos as últimas tomadas do que se podia ver do litoral e do Tupipiá, do qual tínhamos uma bela vista daquele ponto. Do outro lado do cume, se avistava o inicio da travessia para o Cerro Verde e as montanhas do outro lado da serra. Desceríamos, então, até o A2, onde levantaríamos acampamento para o pernoite. Chegamos lá às 4 da tarde, com a ameaça constante da nuvem negra que se instalara sobre nós, a qual batizamos "carinhosamente" de "Nega Tamara". Persistente, não nos deixou pôr o nariz para fora da barraca. Quando ameaçávamos fazê-lo, no que aparentava ser uma trégua, ela despejava suas "lagrimas", por certo de saudades do trio que, até então, fora mais persistente que ela...

A noite chegou estrelada, sem vestígios de chuva. O Aranha, ao sair da barraca, não conteve a infeliz exclamação de vislumbre: "Olhem, La City!!!", demonstrando dotes para as letras que estão como os meus para a física nuclear. Mas, de fato, Curitiba apontava como um amontoado gigantesco de pontilhadas luzes, dignas de um quadro de Georges Seurat. Olhei para o céu e constatei: "Estão aqui todas as estrelas do mundo". A tão esperada sobremesa do Marcelo veio, e sem decepções: uma surpresa gelada à base de mousse de limão, após um jantar no mínimo requintado para os padrões da montanha. Ceamos polenta com queijo e arroz com funghi secchi. Trouxemos comida "a migué". "Meu calvário na subida foi vão", pensei, desolado. Mesmo sem chuva, mas com vento, adormecemos a 10 graus, escala Aranha-Celsius.

Estava brusco no alvorecer do dia 17, último de nossa excursão. Durante a descida, cruzamos com um grupo que, naturalmente, subia. E nos colocamos no lugar daqueles que cruzaram conosco há 4 dias, ao pensarmos "Malucos, vão se molhar".

Nos separamos ao chegar em Curitiba, gratificados pela experiência pouco ortodoxa de 5 dias encharcados no mato. Na rodoviária, disse ao Aranha: "Esse termômetro vai voar longe se estiver marcando 10 graus". Mas fui desarticulado pelo termômetro em frente à rodoviária: fazia 10 graus em Curitiba. E já não chovia...

Agradeço ao Marcelo pela oportunidade que me cedeu de relatar a nossa façanha. Foi a prova de que, nem mesmo com chuva, o montanhista se abate, e tampouco deixa de curtir e contemplar o que a natureza lhe dispõe de melhor, em seu estado mais virgem. Montanhistas, uni-vos! São as Águas de Julho fechando o melhor da estação!!!