"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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1 de out. de 2009

ALICIA DE LARROCHA: UMA ELEGIA

Ela entra no palco vagarosamente e, com um sorriso largo e claramente sincero, saúda o público. Volta-se para a orquestra e, com a mesma distinção, se curva diante dos músicos. Senta-se ao piano e põe os óculos, que lhe conferem o ar de uma vovó que está prestes a bater um bolo para a delícia dos netinhos. Porém, a receita é outra. Serena, de gestos econômicos e com um semblante de quem não poderia estar fazendo outra coisa senão música, ela extrai do piano frases melódicas magistralmente construídas e timbres precisos esculpidos em harmonias cristalinas. Seu toque, longe de qualquer mecanicidade vã é, não obstante, claro e preciso. Sua atitude musical é polida e elegante. Assim ela será lembrada.


O mundo da música perdeu, na última sexta-feira, dia 25, em Barcelona, a grande pianista espanhola Alicia de Larrocha.


Num mundo que a cada dia empobrece mais culturalmente e vê os seus grandes referenciais do passado se extinguirem, a transição da grande artista catalã é duplamente sentida. Personalidade afável e carismática, Alicia de Larrocha era de um singular ecletismo. Imbatível na interpretação dos compositores espanhóis, foi também uma distinta mozartiana e, sem sombra de dúvida, uma das maiores intérpretes de Ravel. Ainda para além dessas inquestionáveis referências, caberia dizer que nos deixou igualmente excelentes leituras de Beethoven, Bach, Schumann e Brahms, estas últimas infelizmente pouquíssimo conhecidas. Por fim, é necessário salientar o fato de que se conhecemos compositores como Mompou e Montsalvatge, foi porque as mãos pequenas e robustas de Alicia de Larrocha os colocaram no mapa da música.



Evitando apresentações excessivas, foi no estúdio onde se encontrou. Graças a isso, seu legado nos foi assegurado. Muitas de suas interpretações permanecerão por muito tempo insuperáveis. Cabe citar aqui, para ficar apenas nos seus compatriotas, o mosaico de cores que conseguiu retratar nas Goyescas, de Enrique Granados, ou ainda a poesia depurada de qualquer sentimentalismo gratuito nas Valsas Poéticas e o virtuosismo consciente e efusivo no Allegro de Concierto, todos do mesmo autor. Em Albéniz, possivelmente seu cavalo de batalha, encontramos a intérprete natural, onde o sentimento ibérico prevalece e a roupagem espanhola aparece numa evidência e beleza desconcertantes, sobretudo na suíte Ibéria.


Sua genialidade residia na sensibilidade aguçada e na sua natural capacidade interpretativa, sempre a serviço de sua consciência musical, inteligente e refinada.


O mundo musical sentirá sua ausência física, mas terá seu nome indelével entre os seus mais elevados referenciais.


Repouse na paz do Grande Arquiteto do Universo, grande dama do piano!