"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos." (Marguerite Yourcenar)

«Adevăratul loc de naştere este acela unde pentru prima dată ai aruncat asupra ta însuţi o privire pătrunzătoare» (Marguerite Yourcenar)

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5 de dez. de 2012

A HOLÍSTICA DO RÉQUIEM DE FAURÉ: um cântico de serenidade e ecumenismo





Manuscrito do Requiem op.48: In Paradisum; Bibliothèque Nationale, Paris.

            Compositor que passou à posteridade como sinônimo de refinamento, rigor e elegância, Gabriel Fauré (1845 - 1924) legou-nos uma relativamente extensa produção caracterizada pela sutileza, pelo detalhe e – sobretudo – por uma linguagem musical que a todo instante parece transcender o limite da própria música e insinuar um algo mais que é ao mesmo tempo intangível e indefinível. É precisamente esse « algo mais » que constitui a assinatura sonora do compositor francês. Em Fauré vemos a projeção exponencialmente ampliada de duas das principais características da música francesa : a recusa ao excesso e o burilamento do detalhe. Provas maiores disso são sua primorosa música de câmara – incluindo as chansons –, a distinta produção para o piano – no conjunto da qual situamos a ímpar Balada op.19 – e, numa medida muito especial, o seu Requiem op.48, obra de longa gestação e expressão plena da filosofia íntima do compositor.
            Embora menos interpretada do que as obras homônimas de Mozart, Verdi ou Brahms, o Requiem de Fauré figura entre as composições de maior prestígio não apenas do gênero como do repertório francês. Sua característica marcante e distintiva é sem dúvida, além da sobriedade de concepção, sua atmosfera diáfana e luminosa, tão incomum nas obras de um gênero em que predomina a aflição associada à morte e a incerteza do pós-vida. Em sua versão, Fauré evidencia sua concepção holística e espiritualista da morte transmutando a gravidade litúrgica do texto e da música que soía ser composta para esse tipo de obra e dando lugar a uma arquitetura sonora predominantemente leve e luminosa. Para tanto, maneja a paleta orquestral de modo a conferir à obra uma atmosfera quase translúcida, com élans de severidade sublinhando antes as inflexões de certas palavras do que porções integrais da música. Nesse particular, a partitura se revela pródiga no tratamento das dinâmicas e no fluxo expressivo das construções fraseológicas. Outro recurso de que Fauré lança mão é a alteração deliberada do texto do cânone católico de forma a universalizar uma mensagem de consolo e de libertação, ao invés do habitual temor do julgamento e da punição que se operariam no além.

Composição
De todas as partes que integram o Requiem, a mais antiga é o Libera Me, que Fauré havia composto em 1877 como uma obra independente. Contudo, a primeira performance do Requiem não trazia o Libera Me, contendo apenas o Introitus, o Kyrie, o Pie Jesu, o Agnus Dei e o célebre In Paradisum. Esta versão primeva foi executada pela primeira vez em 16 de janeiro de 1888, na igreja parisiense da Madeleine, por ocasião das exéquias do arquiteto francês Joseph-Michel le Soufaché. Fato curioso, a parte solista de soprano foi cantada na ocasião por um garoto prodígio de 11 anos – o futuro compositor Louis Aubert. Posteriormente – o mais provável na primavera de 1889 –, o compositor acrescentou o Offertorium, com a possível exceção do coro O Domine, que talvez date do começo de 1893. Esta primeira versão de facto foi também executada na Madeleine, sob a batuta de Fauré, em 21 de janeiro de 1893.
Em 1898, o editor Julien Hamelle solicita a Fauré uma versão mais robusta do Requiem, com vistas ao emprego de um efetivo orquestral completo. Permanece até hoje uma incógnita se a orquestração que daí derivará foi efetivamente escrita por Fauré. É bastante provável que ela tenha sido levada a cabo por um de seus alunos, ao que tudo indica Jean-Roger Ducasse, uma vez que Fauré se achava ocupado com múltiplas outras tarefas. O músico britânico John Rutter sustenta essa tese afirmando que o sempre escrupuloso e meticuloso Fauré não teria deixado passar os muitos erros e imprecisões que de fato traz a primeira edição da obra. Além disso, era praxe Fauré confiar a algum de seus alunos as tarefas de orquestração e redução para piano de muitas de suas obras. A versão orquestral foi estreada em 12 de julho de 1900 no Palais du Trocadéro sob a direção de Paul Taffanel, como parte da programação de concertos oficiais da Exposição Universal de 1900. Uma terceira versão foi estreada em 1988 após a descoberta, em 1968, de um manuscrito da versão original nos subsolos da igreja da Madeleine. A comparação das partes instrumentais com o manuscrito de Fauré, conservado na Biblioteca Nacional da França, possibilitou ao musicólogo Jean-Michel Nectoux reconstruir esta versão no decurso dos anos 1970.

Concepção
À parte o já citado Libera Me, a composição do Requiem se arrasta entre 1887 e 1890. Embora não haja evidências de um motivo específico ou intenção particular que o tenha levado à composição do Requiem (ele próprio declarou: « Meu Requiem foi composto sem nenhum objetivo... apenas por prazer, se é que posso dizer algo assim ! »), é difícil descartar a influência emocional que possam ter produzido na pena do compositor as mortes de seu pai, em 1885, e de sua mãe, na véspera do ano novo de 1888.
Fauré servira na igreja da Madeleine como organista por diversas vezes substituindo Camille Saint-Saëns e passara à função de mestre de capela em 1877. Tendo composto seu Requiem nos anos seguintes, Fauré declarou, a respeito da aura de sua obra: « Talvez eu tenha instintivamente tentado fugir da praxe, por ter por tanto tempo acompanhado ao órgão os serviços fúnebres! Eu já estava saturado daquilo e quis fazer uma coisa diferente ». Além disso, é preciso salientar o fato de que Fauré se declarava « não crente, mas tampouco cético », de acordo com as palavras de seu filho Philippe Fauré-Frémiet. Eugène Berteaux acrescenta ademais que « para Fauré, a palavra ‘Deus’ era apenas o gigantesco sinônimo da palavra Amor ». Desta feita, o fato de não ter sido religioso, no sentido convencional do termo, não atesta uma repulsa à religião, e sim uma inclinação à espiritualidade, mais aberta, irrestrita e – quiçá – ecumênica. Fauré, de fato, confessara: « Disseram que meu Requiem não exprime o medo da morte. Alguém até o chamou de ‘acalanto da morte’. Todavia, é assim que eu a concebo: como uma entrega venturosa uma aspiração à felicidade do além mais do que como uma passagem dolorosa... ». E mais : « Tudo o que consegui absorver por meio de ilusão religiosa eu coloquei no meu Requiem, que é além de tudo dominado do começo ao fim por um sentimento bastante humano de fé no repouso eterno ».
O musicólogo francês Marc Honegger ressalta, por fim, que o sentimento « religioso » de Fauré « se evidencia mais ainda em suas últimas composições, as quais introduzem na música uma expressão intimista, misteriosa e vizinha ao sentimento religioso e testemunham uma alta filosofia da vida ».

Características interpretativas
Uma das passagens mais belas da obra é a diáfana ária para soprano Pie Jesu, que pode ser interpretada pela voz branca de um soprano infantil, o que ademais lhe confere uma aura de pureza angelical incomum. Saint-Saëns disse a respeito desse fragmento a Fauré, de quem fora professor: « Assim como o ‘Ave Verum’ de Mozart é ‘o’ Ave Verum, o teu ‘Pie Jesu’ é o ‘único Pie Jesu’ ».
Os tímpanos são usados parcimoniosamente e de maneira muito pontual – apenas no Libera Me, onde também se encontra um dos ápices emocionais da obra : a entrada em uníssono do coro, numa súplica íntima, suave e pungente. O timbre do barítono está na obra a serviço de um cálido e compadecido envolvimento, mais do que a um caráter imperativo, inquisidor e severo. Não obstante, é o mesmo barítono que apresenta o momento de maior austeridade do Requiem, qual seja, o começo do próprio Libera Me, pontuado pela harmonia solene e algo sombria do órgão. O único momento da partitura a conter um elemento flagrantemente dramático é a breve passagem do Dies Irae – a ‘ira divina’ – cujo texto ameaçador, que encontrou eco nas célebres páginas musicais de Cherubini, Mozart e Verdi, antagoniza com a natureza serena da obra de Fauré, certamente se opondo também à própria filosofia pessoal do compositor.
            Mas o que inquestionavelmente define o astral holístico da composição é a presença do coro infantil. No In Paradisum, a melodia conduzida pelas crianças, acompanhadas tranquilamente pelos registros do órgão positivo, pelas cordas e pela harpa, materializa a certeza do repouso eterno e culmina a obra não na engessada esquadria da visão cristã, mas sim num etéreo paganismo que sugere o acolhimento indistinto de todas as almas num quase nihilismo.
A tônica da obra pode, portanto, ser condensada em duas palavras: maravilhamento e esperança.

Texto
O texto litúrgico latino tradicional é objeto de várias alterações por parte de Fauré. O compositor altera substancialmente sua estrutura inicialmente pela omissão da Sequenz (que traz as conhecidas estrofes Tuba mirum, Rex tremendae e Lacrimosa) e do Benedictus. O texto do Dies Irae, que também figura na Sequenz, só aparecerá na parte central do Libera Me, fazendo desse fragmento o mais denso da obra. O texto Libera Me, a propósito, não integra o conjunto de textos canônicos do Requiem, sendo tradicionalmente cantado a parte. Fauré, além de incorporá-lo ao seu Requiem, adiciona ainda os versos de In Paradisum, descrevendo uma visão reconfortante e plácida do paraíso.
Fauré altera ainda certas passagens significativas ao longo de todo o texto, suprimindo o terceiro verso do Offertorium (que menciona São Miguel e Abraão), acrescentando ‘Amen’ ao final da passagem e, perspicazmente, omitindo duas palavras na sentença « libera animas omnium fidelium defunctorum (‘liberta as almas de todos os fiéis mortos’) », de maneira que o texto resultante é « libera animas defunctorum (‘liberta as almas dos mortos’) », o que sugere uma intercessão divina em favor de todos os finados, e não apenas dos cristãos. Um apreciável e nobre desvio teológico!

Projeção
            O opus magnum de Fauré não tem cessado de ser executado e é particularmente surpreendente o uso que a mídia tem feito de várias partes da obra, sobretudo do Pie Jesu e do In Paradisum. Ouvimos as notas do Requiem em filmes como Copycat e Beleza Americana ou ainda, curiosamente, no seriado South Park.
O Requiem de Fauré reinaugura de certa forma a música religiosa francesa e influenciará mais tarde, em espírito e forma, as obras análogas de Duruflé e de Ropartz. Ora, não parece absolutamente pertinente e natural que tenha sido justamente na França, pátria do Iluminismo e berço de fidedignas e influentes correntes esotéricas, que tal mudança de paradigma se tenha produzido? Além disso, parece-nos perfeitamente lógico que tal síntese apontando para o universalismo e para a abertura de espírito tenha se operado pelas mãos refinadas e pela sensibilidade aberta de um artífice ímpar e sofisticado como Gabriel Fauré.
 por Raul Passos
Discografia sugerida:
* Choir of Westminster Cathedral, City of London Sinfonia; David Hill (reg.); David Wilson-Johnson (barítono); Aidan Oliver & Harry Escott (sopranos) - HMP CLASSICS.
* City of London Sinfonia; The Cambridge Singers; Caroline Ashton (soprano); Stephen Varcoe (barítono) / John Rutter (reg.) - COLLEGIUM RECORDS.

Bibliografia
§  DUCHEN, Jessica. Gabriel Fauré (col. « 20th Century Composers). Londres, Phaidon, 2000.
§  ENCICLOPÉDIA SALVAT « OS GRANDES TEMAS DA MÚSICA ». Vol. 36 Gabriel Fauré – Requiem op.48, 1983.
§  FAURÉ, Gabriel, Correspondance / Gabriel Fauré ; textes réunis, présentés et annotés par Jean-Michel Nectoux. Paris, Flammarion, 1980, cartas n° 66, 67 , 114 e 128.
§  HONEGGER, Marc. Dictionnaire de la Musique. Bordas, 1979. Artigo: « Fauré, Gabriel ».
§  HOUZIAUX, Mutien-Omer.  À la recherche « des » Requiem de Fauré ou L’authenticité musicale en questions. Revue de la Société Liégeoise de Musicologie, nos  15-16. Prefácio de Jean-Michel Nectoux.
§  JONES, J. Barrie. Gabriel Fauré – A Life in Letters. London, B. T. Batsford Ltd., 1989. 
§  NECTOUX, Jean-Michel. Gabriel Fauré : les voix du clair obscur (col. Collection Harmoniques). Paris, Flammarion, 1990.
§  ROLLIN, Vincent. Le Requiem op. 48 de Gabriel Fauré : une esthétique sacrée et funèbre originale et personnelle. Dissertação de Mestrado, Université Lyon 2, 2007.
§  RUTTER, John. Prefácio do Requiem Op. 48, de Gabriel Fauré. Chapel Hill, NC, Hinshaw Music, 1984.
§  STEINBERG, Michael. Gabriel Fauré : Requiem, Op. 48 ; Choral Masterworks : A Listener's Guide. Oxford, Oxford University Press, 2005, 131–137.
§  THE OXFORD DICTIONARY OF MUSIC. Michael Kennedy (editor). Verbetes « Fauré » e « Fauré’s Requiem ». Oxford, Oxford University Press, 2006.

18 de set. de 2012

10 de jul. de 2012

OBLIVION


Tua dúvida, minha ciência
 - Porque eu me debruço em ti
Pareces não estar ali  -

Não fuja!

És uma ilusão cristalizada
Amargo pensamento de amanhã
- Lamento ou lamúria vã -

Não fale!

Madrugada imaterial - tesouro ardente
Tua sombra, vago relance...
Te peço, para que eu descanse,

Não durma!

           LONDRES, INGLATERRA, 25/VI/2012

4 de abr. de 2012

MANIFESTO SOBRE O EXERCÍCIO DA VIRTUDE NO UNIVERSO DA MÚSICA E DA TRADUÇÃO



            Qualquer tentativa de se redigir um ensaio contemplando a aplicação e o exercício da virtude na vida profissional seria desprezível se se detivesse única e restritamente no domínio da própria profissão. Em outras palavras, não é possível, se se pautar pela sinceridade e pela autenticidade, esboçar uma única linha sequer para se falar de ética e de valores se interpretarmos a nossa conduta profissional dissociada daquela de nossa vida pessoal. Ora, não são o eu-profissional e o eu-pessoa o mesmo indivíduo? Não experimentam ambos os mesmos sentimentos? Não têm ambos o mesmo modo de pensar, as mesmas crenças e as mesmas aspirações? Portanto, pregar uma maneira de agir profissional diversa daquela que empregamos na vida pessoal seria falso – para não dizer impossível –, posto que é o mesmo ser que experiencia as duas realidades. Os ideais, a retidão de caráter, a amabilidade, a vontade de servir, a cortesia e o desejo de aprender devem ser sempre uma constante natural e (por que não dizer?) instintiva naquele que condiciona sua esfera de ação aos limites do esquadro da virtude.
            Contudo, em que consiste o vigor necessário ao aprimoramento profissional e que resultado desejamos contemplar na forma de uma jóia? Compete a cada um ter a sensibilidade e o conhecimento necessários para saber O QUE e COMO fazer no âmbito de suas profissões.
            No que me toca, tenho a incumbência e a honra (sim, me sinto orgulhoso) de me dividir em duas esferas profissionais contíguas. Músico nasci e músico partirei para o Oriente Eterno. Todavia, à minha carne e ao meu sangue musical, certamente por razões cármicas, agregou o Grande Arquiteto dos mundos um desejo inelutável, já manifestado na primeira infância, de conhecer culturas diferentes. E o que melhor pode sintetizar a cultura de um povo (entendendo-se por cultura o conjunto complexo de hábitos e tradições) senão sua língua? Quantos de nós já nos detivemos para refletir sobre o peso secular da história que transparece no aparentemente simples falar de um idioma? Quanta filosofia já foi escrita numa língua para expressar o sentido de ser de um povo? Quantos discursos inflamados de liberdade, quantos romances contendo a quintessência da alma pátria e quantas cartas de amor se produziram contendo em si a densa porém sensível identidade necessária do idioma? Assim sendo, mais ou menos naturalmente, desde cedo compreendi que seria preciso empregar minha facilidade em adquirir línguas a serviço de um ideal maior e aparentemente utópico: afinal de contas, facilitar a comunicação entre pessoas não é permitir que a fraternidade ultrapasse limites? O entendimento mútuo, por essa mesma linha de pensamento, não é condição sine qua non para que a paz reine?
            O métier da tradução exige não apenas um conhecimento lingüístico apurado – sobretudo na língua-mãe –, requerendo também uma percepção cultural bastante ampla, o que engloba o entendimento do pensamento do povo e a sensibilidade para com a produção literária e outras nuances do modus vivendi dos países da língua em questão. Nesse particular, além da sede constante de conhecimento, o tradutor deve ter mente aberta, ser flexível, livre de preconceitos, impessoal e respeitar a integridade e a integralidade da cultura envolvida, sendo perspicaz o bastante para reproduzir (e recriar) no vernáculo cada pormenor contido na expressão do idioma sem que haja prejuízo ou supervalorização de significado. Como se pode ver, um caminho bastante estreito se se pretende evitar qualquer tendência; equilibrar colunas é sempre o mais difícil, seja em nossas ações, em nossas palavras ou em nossos pensamentos. A ética e a imparcialidade são duas virtudes fundamentais numa profissão que, por força de sua própria natureza, pode ser definida, de acordo com Umberto Eco, como a arte do dire quasi la stessa cosa; “dizer quase a mesma coisa”.
            Regressando um pouco para a terra firme, esse é o ponto em que eu os convido a pensar em quantas pessoas, no meio profissional de cada um, são “pseudo-profissionais”. Sabemos que apenas uma parcela de nossos colegas de profissão – qualquer que seja ela – é verdadeiramente comprometida com os ideais próprios a ela. Da mesma forma, sabemos, no silêncio de nossa percepção, que estas pessoas são muitas vezes também de alguma maneira escusas na vida pessoal.
            Pode-se dizer, via de regra, que o verdadeiro profissional não relativiza, não barganha e nem abre mão de suas verdades profissionais por força das circunstâncias, da mesma maneira como não põe em xeque os seus valores pessoais. Em outras palavras, não se prostitui profissionalmente da mesma maneira que não o faz no tangente aos seus assuntos de foro íntimo.
            Sem dúvida, somos humanos... E, por humanos sermos, estamos sujeitos a fraquezas e às inconstâncias próprias do plano terreno e da vida material. A questão da ética e dos valores se impõe exatamente no limite entre aquilo que é aceitável e aquilo que não é.
            A música, originalmente um canal direto de comunhão com o Divino e com o inefável, inicialmente consagrada aos ideais superiores de beleza e estruturada sobre princípios filosóficos e mesmo herméticos, tem sido ao longo do tempo corrompida e deteriorada, até o ponto de, a exemplo do que acontece em nosso país, ligarmos o rádio e termos acesso quase única e onipresentemente a uma pretensa “música” pobre, desprovida de qualquer beleza e reduzida a padrões sonoros limitados e quase sempre acompanhados de letras desprezíveis e desconstrutivas. Um verdadeiro desserviço não apenas à sociedade, como à humanidade e à função primordial da música.
            Não quero aqui fazer apologia à música chamada erudita ou culta, que é o cerne da minha atividade, pois também no meio musical acadêmico, a exemplo do que ocorreu também nas artes pictóricas, o materialismo e o espírito arbitrariamente reacionário ao passado levaram infelizmente à produção de uma música excessivamente cerebral, elitista e inacessível – para não dizer intragável.
            A verdade é que, pelo que deduzimos de uma análise da história, estamos na polaridade oposta ao começo. Ou seja, um ciclo está para se fechar. Explico-me: a música era uma realidade harmônica superior e inicialmente imanifesta. No plano terreno, materializou-se em arquétipos sonoros que refletiam a perfeição do mundo superior. Falou de divindades e do Divino. A religião, numa dada altura, condicionou-a em seus cânones. Também ela viveu a era das trevas e da escuridão. A Renascença a fez mergulhar no homem, para que este pudesse por seu intermédio retratar a perfeição da natureza. Mais adiante, as paixões humanas passaram a regê-la, e é exatamente nesse ponto em que, a nosso modesto porém sincero ver, houve a “queda”; a corrupção. Também a música, forçada pela sedução da serpente, deglutiu a maçã das humanidades para doravante servir os interesses humanos. Os excessos do Romantismo, no século XIX, que trouxeram o sentimento e as emoções humanas para o primeiro plano nas artes, resultaram numa abertura de comportas que fez com que todo o resto, inclusive os atributos mais fundamentais e elementares da arte, fosse posto de lado. Em outras palavras, abriu-se mão cada vez mais dos princípios e ideais da arte em favor de um sentimentalismo anárquico e venenoso que veio desaguar num sem-compromisso absoluto da arte em nossos dias. Uma reação a isso, na primeira metade do século XX, embora tenha ampliado as possibilidades da linguagem artística, abriu caminho também para que a música erudita contemporânea explorasse rumos tão pouco usuais que acabou num nihilismo reacionário tão absurdo e num experimentalismo tão gratuito quanto autodestrutivo: a famosa estrada que termina em lugar nenhum ou o tiro que se dá no pé. Disso, temos que hoje o que está ao alcance da nossa mão é uma “música-produto”: um objeto comercial que, como qualquer outro objeto comercial, está sujeito a modismos e tendências, algo muito diferente daquilo que fora no princípio, ou seja, uma arte regida pelas leis imutáveis do Divino.
            Quantos colegas conheço que subverteram o ideal professado no juramento de formatura em favor de uma atividade profissional regida unicamente pelo dinheiro e pelo reconhecimento de uma massa ignóbil... É certo que a humanidade (a grande massa, em particular) precisa ser educada para reconquistar o acesso ao mundo sutil pois, afinal, o que é o correto? Elevar o povo à altura das grandes obras de arte, expandindo assim sua consciência, ou rebaixar a arte ao plano do medíocre e do barato? Será que vale tanto a pena produzir uma pseudo-música massiva pelo único mérito de poder assim contemplar a grosseira exigência imediata de consumo que não exige o esforço de um conhecimento refinado e nem tampouco a sensibilidade da alma? Não se diz que um músico que alcançou o pleno domínio das possibilidades de seu instrumento é um “virtuoso”? E “virtuoso” não significa exatamente “cheio de virtudes”, essas às quais devemos erigir templos?
            Na nossa percepção pessoal, parece que a música tradicional, dita de raiz, é a mais autêntica, na medida em que se conserva mais ou menos próxima à fonte da inspiração simples e espontânea das realidades culturais puras e desprovidas de interesses tendenciosos.
            Cabe aqui uma pequena confissão: por tanto ver o ofício da música deturpado e subvertido, o que por muitas vezes faz dessa arte, por culpa dos próprios músicos, uma ocupação marginal, sobretudo em nosso país, tenho preferido a denominação de “musicista”, por ter a percepção (talvez equivocada, é verdade) de que esse termo esteja um pouco mais próximo aos ideais legítimos a que aspiramos. É bem verdade também que, num país onde as pessoas se consideram com frequência “bastante musicais”, ocorre muitas vezes de um indivíduo que conhece dois ou três acordes se auto-proclamar “músico”. Ora, isso é tão ridículo quanto ministrar uma Aspirina a alguém e se auto-proclamar “médico”. Será possível que o fato do produto da arte ser algo mormente eclético e acessível seja suficiente para fazer de todo indivíduo capaz de traçar duas linhas, versejar algumas palavras ou cantarolar uma melodia, um “ARTISTA”? Deixo a cada um a resposta que mais lhe convier...
            A arte, ao contrário de outros domínios do conhecimento, tem a prerrogativa de poder (e mesmo dever) prescindir de tendências momentâneas, uma vez que, vinda do Divino e para ele mostrando o caminho de regresso, não pode fazer cessão a gostos e inconstâncias daquilo que é impermanente e humano. É por essa razão que o artista criador deve se perguntar, antes de passar à produção em si, se aquilo que ele está prestes a gerar é de fato válido e digno, e não apenas fruto de uma emoção sazonal ou de um desejo de exteriorização egoístico. O que disse Carlos Drummond de Andrade a respeito da poesia, na frase que citaremos a seguir, aplica-se absolutamente a qualquer das artes. Disse ele: “Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação”. Ou ainda, nas palavras atribuídas a Thomas Edison: “Talento é 1% inspiração e 99% transpiração”, no sentido de que é o esforço (ou, em outras palavras, o uso que fazemos da providência divina) que santifica e valida a substância da arte enquanto caminho de ascensão.
            A confiança que depomos nas leis superiores operadas pela Grande Sabedoria Infinita deve nos incitar a perseverarmos firmes na retidão de nosso comportamento, pois apesar de eventuais privações e provações impostos pela materialidade quando nos recusamos a ceder a tentações e vícios, temos a certeza interior da recompensa que nos aporta o serviço bem feito. Nisso, a lembrança de nossas obrigações cármicas deve também sempre estar presente em nossa lembrança – no umbral de nossa consciência – para nos alertar quanto aos perigos dos fáceis e escusos subterfúgios de que muitas vezes nossos semelhantes (não tão semelhantes assim...) fazem uso.
por Raul Passos, em 22 de Março de 2012

8 de jan. de 2012

ROMEO E GIULIETTA EM VERONA


ROMEO E GIULIETTA EM VERONA


Em Verona, onde o ar familiar de algo que não vivi
sussurra na sombra dos que passam,
Um segredo me seguia

E eu não sabia...

Me falava de confissões que não fiz
do meu orgulho que esqueci
e de amores que abandonei

Que nunca amei...

Romeo desiludido - de passos perdidos
E lembrança firmemente posta nela -
Amarga e desesperançosa Giulietta -

Quella maledetta!


por Raul Passos, Verona, Itália, 03/01/12.